Em nome dos pais que são vítimas de bullying dos filhos
Não é por acaso que a violência doméstica acontece entre as quatro paredes da casa onde, sem testemunhas, as pessoas descarregam sobre aqueles que supostamente mais amam.
Ana,
A verdade faz-nos mais fortes
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Ana,
Esta carta é curta e já sei que a vais sentir como uma provocação, mas fico com os cabelos em pé quando oiço crianças e adolescentes a responder aos pais num tom de voz malcriado, arrogante. E, às vezes, mesmo cruel.
Quando são os filhos e os netos dos outros, podemos dar-nos ao luxo de içar as sobrancelhas e pensar mal de quem os educou, mas quando são os nossos?!?
A sério, quando me cruzo com uma criança assim tenho de me controlar para não reagir a quente e dar-lhes um estalo ou um açoite, mesmo se a frio seja contra ambas as coisas.
Já sei que me vais dizer que não vale vencê-los pelo medo, nem dar-lhes exemplos de comportamentos que objectivamente podem ser classificados de maus-tratos, mas... Será que não devem mesmo ter medo de pisar o risco? Não é bom que sintam ao vivo e a cores que também os pais são de carne e osso e reagem quando são maltratados?
Repara, todos temos medo de provocar para lá de um limite aceitável os nossos amigos, os nossos chefes (que podem despedir-nos com justa causa) ou o polícia que nos manda parar, não é? Ou seja, aprendemos a controlar-nos, a engolir, a calar, e regra geral não passamos da marca, e isso cá para mim é uma coisa boa. Por que hão-de os pais ser excepção?
Além do mais, Ana, isto pôs-me a pensar que não é por acaso que a violência doméstica acontece entre as quatro paredes da casa onde, sem testemunhas, as pessoas descarregam sobre aqueles que supostamente mais amam. Desculpa, estou a levar a conversa para um extremo terrível, mas não me esqueço de como o Eduardo Sá diz que os pais não podem mesmo permitir que os filhos os magoem por palavras, actos ou, até, omissões. E reparo que há pais que são vítimas do bullying dos filhos e que acabam por ir amochando, evitando os temas que provocam conflito, contornando os problemas para fugir a mais uma batalha campal, tirando os obstáculos do caminho para não dar azo a discussões. E não gosto.
É duro para os pais, mas é incrivelmente mais difícil para os avós, que se sentem de mãos e pés atados, sem qualquer controlo sobre a situação, sofrendo pelos filhos, mas também pelos netos, imaginando o que os espera se ninguém lhes puser limites, coarctando aquela omnipotência.
Tu que estudas estas coisas, achas que estou a exagerar?
Querida Mãe,
Deixe-me começar já por discordar: Não é nada mais duro para os avós do que para os pais estar confrontado com uma criança que está a responder mal, a gritar, a acusar, a repetir vezes sem conta a mesma coisa, às vezes até a bater (nela própria ou em coisas), tal o descontrolo. Para os pais é mil vezes pior.
Não é só terem que aguentar a “cena”, é também sentirem-se os piores pais do mundo — os que falharam tanto que agora têm um filho malcriado, um “delinquente” em casa. É recriminarem-se porque acabam por se deixar tomar por uma fúria, dizendo ou fazendo coisas de que se envergonham, algumas com que nem sonhavam. É, a seguir, terem de lidar com a culpa quando a criança, mais cedo ou mais tarde, se desfaz num pranto de aflição. É lidar com o julgamento dos outros – e os avós são muitas vezes os espectadores mais próximos.
Claro que além da idade — somos mais tolerantes com as birras dos mais pequenos —, também há variações enormes entre crianças, por características que lhes são intrínsecas e não resultam necessariamente (ao contrário do que os pais e os avós dos meninos “fáceis” querem acreditar) da forma como são “educados”.
Mãe, há miúdos que dão uma resposta torta, mas que recebem bem um “Não voltes a falar assim comigo” assertivo; mas há crianças explosivas, mesmo explosivas, com um nível de tolerância baixíssimo, onde qualquer acto mais assertivo ou agressivo da parte dos pais leva a escalar imediatamente a situação. É claro que esses representam para a família um desafio muito maior.
Mas, espere, vamos lá então começar pelo princípio da sua carta. A verdade é esta: todos nós falamos mal, respondemos torto e inclusive temos vontade de bater em alguém quando ficamos assoberbados, frustrados e zangados. Ah, mas diz-me a mãe “Nós controlamo-nos”. Sim, todos nós controlamo-nos, até não conseguirmos controlar mais. E as crianças também. Duvida? Quantas vezes juramos que não íamos gritar com os miúdos, que não íamos dar um açoite, que não íamos responder com desprezo. E quantas vezes, ansiosas com a entrega de um trabalho, por exemplo, falamos mal com o nosso marido, fomos ríspidas, implicámos com o jantar? Sim, com o chefe e as forças de autoridade aguentamos mais, porque o medo tem de facto um grande poder sobre nós, mas não queremos o medo em nossas casas, até porque seria enorme o preço que uma criança pagaria por viver assim.
Como a mãe sabe perfeitamente, não estou com tudo isto a defender que é suposto aceitarmos um chorrilho de insultos dos nossos filhos com um sorriso nos lábios, ou sequer que lhe demos a outra face. O que quero dizer é que temos que actuar em dois tempos diferentes, para obter os tais resultados que todos os pais e avós ambicionam — uma pessoa que se respeite a si própria e aos outros.
Num primeiro momento, em que os ânimos já estão muito acesos não há “ideal”, faz-se o melhor que se consegue, procurando de-escalar a situação. Para isso ajuda pensar nisto — tenho poucas crenças absolutas, mas estas, até por experiência própria, são as minhas:
- Ninguém vai aprender nadinha nessas alturas, por isso podemos ignorar a voz interior que nos diz: “Ele tem de aprender, não pode julgar que manda em mim, ele não vai fazer de mim gato-sapato!” Libertos desse grilo, vai ver que surgem imediatamente outras alternativas, para além do bater, castigar, gritar ou ceder.
- É mais fácil conseguir chegar a este ponto quando se muda a lente com que se encara a batalha: se em vez de: “Este miúdo está a provocar-me”, pensarmos: “Este miúdo está a passar um mau bocado”, muda tudo. É que lidar com uma criança inflexível e rapidamente frustrável, com inflexibilidade e frustração, além de não funcionar, dá-lhe apenas como exemplo um comportamento igualzinho ao dele. Ou seja, mais do mesmo!
Num segundo momento, é preciso conversar com a criança sobre o que se passa dentro dela e como a podemos ajudar. Não adianta repetir a ladainha do “mimado”, nem tão pouco alimentar a ideia (muito na moda) de que os miúdos nos estão a “testar”, desejando que lhe imponhamos limites.
É preferível partirmos do princípio, verdadeiro, de que o nosso filho preferia certamente estar feliz, a estar infeliz, preferia estar bem connosco, a estar mal, ser elogiado a ser repreendido e castigado. Aliás, a maioria destes pais, sabe que fora destes momentos aquela criança é doce e querida e que, quando estão bem, são mesmo exemplares.
Ajuda tentar perceber se ela andará demasiado cansada, se as expectativas da escola ou dos pais são demasiado altas, se anda tão preocupada com alguma coisa que já nem consegue controlar-se. Às vezes, os pais precisam de ajuda externa, acompanhamento psicológico, de alguma intervenção na escola (para algumas crianças o esforço de “aguentar” um dia de aulas torna-as incapazes de gerir mais coisas em casa, mesmo as que nos parecem simples, como por a mesa — veja na net a Spoon Theory!). Mas porque esta mudança é sempre demorada e difícil, é fundamental evitar que o ambiente em casa se degrade (sim, até chegar aos maus-tratos), ou que os pais — como a mãe diz, e bem — passem a andar de volta dos filhos em pezinhos de lã, aprisionados numa relação assustadora, de que ninguém sai a ganhar.
Mas há uma questão que a mãe coloca e que me parece mesmo pertinente: Afinal se tivermos toda a paciência do mundo, se formos capazes de olhar para lá da “tortura” que nos infligem, se a nossa atitude for de (aparente) solidariedade, não estaremos a dar-lhes um exemplo de que o bullying é aceitável? Quase como se lhes disséssemos que quem ama muito fecha os olhos a tudo, desculpa o insulto e a agressão, na expectativa de que a empatia e a compreensão cheguem sempre para resolver tudo.
Talvez possa acontecer, mas acredito que não corremos esse risco se conseguirmos ajudar os miúdos a perceber os seus próprios obstáculos, as suas próprias fragilidades, mas também as suas forças. Partilhando com eles os nossos medos, treinando-nos a resolvê-los em conjunto. Assim, no futuro, vão procurar um modelo de relação onde as suas preocupações são escutadas, onde os seus problemas são abordados e resolvidos em colaboração, mas onde não julgamos o outro pelos seus “dias maus”.
No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Mas, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram.