A inovação e o acesso enquanto janelas de oportunidade para a oncologia

A conferência virtual “A inovação e os desafios de acesso”, realizada no passado dia 16 de Setembro, faz parte da iniciativa “Uma agenda para combater o cancro: Por todos nós, para todos nós”, organizada pelo Público em parceria com a MSD Portugal.

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Qual o valor da inovação? Como estimular o seu desenvolvimento? O que falta a Portugal nesta área? Quais os desafios para o futuro? Estas foram algumas das questões debatidas por um painel de especialistas, composto por Céu Mateus, professora catedrática de Economia da Saúde, na Universidade de Lancaster, Heitor Costa, director executivo da Apifarma, e José Dinis, director do Programa Nacional para as Doenças Oncológicas da Direcção Geral da Saúde (PNDO/DGS). Durante cerca de hora e meia, os especialistas analisaram o posicionamento de Portugal relativamente a outros países europeus na questão do acesso a medicamentos inovadores e os ganhos associados a uma melhor gestão nacional, reforçando o impacto que a pandemia de Covid-19 teve no diagnóstico e tratamento do cancro. 

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Qual o valor da inovação? Como estimular o seu desenvolvimento? O que falta a Portugal nesta área? Quais os desafios para o futuro? Estas foram algumas das questões debatidas por um painel de especialistas, composto por Céu Mateus, professora catedrática de Economia da Saúde, na Universidade de Lancaster, Heitor Costa, director executivo da Apifarma, e José Dinis, director do Programa Nacional para as Doenças Oncológicas da Direcção Geral da Saúde (PNDO/DGS). Durante cerca de hora e meia, os especialistas analisaram o posicionamento de Portugal relativamente a outros países europeus na questão do acesso a medicamentos inovadores e os ganhos associados a uma melhor gestão nacional, reforçando o impacto que a pandemia de Covid-19 teve no diagnóstico e tratamento do cancro. 

(Re)veja aqui o vídeo desta conferência 

“A pandemia que todos nós vivemos tornou ainda mais evidente o valor da inovação”. Foi desta forma que Heitor Costa começou a sua intervenção, começando por contextualizar o tema da inovação com o sucesso verificado no processo de vacinação contra a Covid-19, em Portugal, e que tem permitido “libertar a sociedade”. “Na verdade, as vacinas são uma inovação como são todos os medicamentos, incluindo os medicamentos para o cancro. Sem inovação não temos, de facto, muitos dos resultados em saúde que só se devem a essa inovação”, afirmou.

Segundo o estudo “O Valor do Medicamento”, apresentado em 2018 pela Apifarma, os medicamentos inovadores “acrescentam valor significativo a Portugal e trazem benefícios superiores à despesa total em fármacos”. Os dados, analisados pela primeira vez, no que respeita ao panorama nacional, apresenta uma perspectiva referente a três planos: humano, social e económico. Os medicamentos mudaram o panorama português, melhorando a vida dos doentes, gerando rendimento e poupança para a sociedade, e estimulando a economia.

Conforme explica o director executivo da Apifarma, foram analisadas diferentes patologias, numa tentativa de mostrar de que forma a população portuguesa era impactada. Os dados recolhidos ao longo de 20 anos, incluindo as informações referentes aos medicamentos inovadores, concluíram que a inovação permitiu adicionar milhares de anos de vida saudável, prolongar a esperança média de vida, salvar vidas e promover a poupança no sistema de saúde. “A indústria farmacêutica é um sector económico de alto valor acrescentado e, para a economia portuguesa, tem uma produtividade no nosso produto interno bruto de 2,1 que compara com uma média de produtividade de todos os outros sectores de 1,9. É um sector em que vale a pena investir”. De acordo com o responsável, a saúde ganhou uma importância acrescida com a pandemia e o sector dos medicamentos mostrou ser um dos mais inovadores e que pode fazer a diferença, na Europa, em termos de recuperação e resiliência. E, embora seja responsável por apenas 22% dos medicamentos consumidos no mundo, exporta mais do que importa. “É, por isso, um pilar fundamental daquilo que poderá vir a ser a nossa recuperação económica”.

A economia e a saúde andam de mãos dadas e equilibrar a inovação e o acesso generalizado da população é uma questão bastante antiga para a economia da saúde. “A maior dificuldade não se prende com a chegada da inovação, mas, muitas vezes, com os custos que essa inovação comporta”, defendeu Céu Mateus, reforçando que a questão que se coloca é como maximizar a saúde da população portuguesa considerando o seu perfil de morbilidade e as escolhas necessárias do ponto de vista político: “para um economista da saúde, aquilo que é um conceito básico é a questão da escolha”.

Não há dúvidas sobre os ganhos em saúde e a longevidade proporcionados pela inovação. “Os ganhos que conseguimos ter na esperança média de vida devem-se muito aos tratamentos inovadores que têm chegado ao mercado nos últimos 20, 30, 40, 50 anos e também uma melhoria generalizada das condições de vida”, acrescentou a docente. Por isso, “uma sociedade que consegue crescer, tornar-se mais produtiva e ter mais condições de vida para a sua população, é também uma sociedade que pode retirar mais ganhos da inovação”.

José Dinis começou por referir que a oncologia é o motor da inovação a nível mundial. “Há muito mais inovação além dos medicamentos, começando desde logo pelos ensaios clínicos. A oncologia mudou o paradigma dos ensaios clínicos”, explicou o director do PNDO. Esta especialidade aparece assim como uma janela de oportunidade no que à inovação diz respeito. Referindo-se ao Plano Europeu de Luta Contra o Cancro, apresentado em Fevereiro deste ano, o médico oncologista sublinhou que a inovação – nas suas variadas vertentes – é uma das prioridades e que o cancro tem sido “uma das bandeiras” da presidente da Comissão da União Europeia, Ursula von der Leyen. Está criada assim uma “janela de oportunidade para trazer valor” através da inovação e, acima de tudo “para os doentes viverem mais e melhor que é o grande objectivo final”.

O grande desafio para Portugal, defendeu José Dinis, é saber como é que o país “pode participar nesta aventura”. Como um exemplo de boas práticas na área da inovação em oncologia, o director do PNDO destacou a criação do National Institute of Health Research (NIHR), em 2006, em Inglaterra, como o “braço armado para a investigação do Sistema Nacional de Saúde inglês que estava a ficar para trás”. O director do PNDO/DGS gostaria de assistir a algo semelhante em Portugal e destacou alguns passos que foram dados e que podem ser positivos, acima de tudo, “para fixar gente em Portugal”. Considerando que Portugal tem condições para a melhor inovação, o grande desafio passa por uma melhor gestão”. Mais do que a falta de dinheiro, Portugal tem um grande défice de organização”, defendeu José Dinis.

Dificuldades no acesso

O médico oncologista considera que o problema das assimetrias está resolvido: “as doenças raras [em oncologia] devem ser tratadas em centros de alto volume e de alto expertise e isso acontece em Lisboa, Coimbra e Porto”. E adiantou que “conseguimos ter uma cobertura de doentes à escala nacional de proximidade para as doenças mais frequentes e para os tratamentos que não exigem super especialidades”. O problema das assimetrias a nível nacional, identificado em 2011/2012, não se verifica hoje, ao contrário do desafio da entrada de medicamentos depois do estudo fármaco-económico. Relativamente a outro tipo de acesso, como por exemplo, ao tratamento por radioterapia que era inexistente até há bem pouco tempo, José Dinis congratulou-se pela sua chegada às ilhas e a outras zonas do país onde ainda não era prática comum.

Heitor Costa partilhou uma opinião um pouco distinta. “Fizemos uma auscultação daquilo que são as opiniões, o sentir e o posicionamento dos portugueses no que diz respeito à igualdade entre o País no que se refere ao acesso e à igualdade de oportunidades de tratamento, e mais de metade (60%) considerou que não havia essa equidade entre Porto, Lisboa, Coimbra, Faro ou Vila Real”, exemplificou.

O director executivo da Apifarma revelou as conclusões desse estudo em que se ficou a perceber que os portugueses não se consideram iguais no tratamento oncológico, opinião transversal aos representantes das empresas que disponibilizam soluções terapêuticas. Nesse sentido, destacou os diferentes tempos de acesso a nível de decisão política após avaliação técnica (fármaco-terapêutica e económica), que varia entre os 100 e os 1000 dias em vários países da Europa. “Na área de oncologia, em Portugal, temos tempos de 723 dias, muito longe de qualquer média e muito próximo do topo, que são os 850 dias. Nós demoramos muito naquilo que é a avaliação técnica e demoramos confiando naquilo que tem sido a colaboração da indústria [no âmbito de programas de acesso precoce e autorizações especiais]”.

Aos “tempos imensos da avaliação técnica”, acresce a demora de decisão política e o orçamento que cada hospital tenta gerir mediante as suas disponibilidades. “Nós temos um problema de suborçamentação em Portugal. Os orçamentos continuam a ser distribuídos mesmo com os reforços que o governo tem anunciado, mas não são orçamentos que partam do princípio de financiar aquilo que foi gasto”, salientou Heitor Costa. A saúde merecia que se fizessem orçamentos plurianuais, mais adequados à dinâmica do sector da saúde, defendeu. “Temos de dar esse salto no País”, caso contrário continuaremos, indefinidamente, com hospitais subfinanciados, que farão a sua gestão independente da decisão central.

O responsável partilhou ainda que a Presidência Portuguesa da União Europeia conseguiu concluir um dossier que já passara por várias presidências, que era o da Avaliação Centralizada das Tecnologias de Saúde, que será brevemente formalizado. Portugal defendeu que devemos aceitar os resultados dessa avaliação centralizada, que diminuirão o tempo de avaliação técnica, tornado o processo mais equilibrado.

Desafios para Portugal

Céu Mateus referiu que Portugal é um país pequeno, com recursos muito escassos, mas com pessoas com excelente formação técnica. “Não há que ter qualquer dúvida sobre a qualidade do sistema de ensino e dos recursos humanos”, defendeu, sublinhando que a ciência é colaborativa e que não há nenhum País a fazê-la sozinho. Relativamente ao exemplo de Inglaterra, a professora catedrática referiu “a visão da diplomacia científica estratégica sobre o posicionamento de Inglaterra a 10,15, 20 anos” e adiantou que as circunstâncias conjunturais de base em Inglaterra são muito diferentes das portuguesas. “Nós vemos a dificuldade que a Fundação para a Ciência e Tecnologia tem em encontrar recursos para financiar a investigação face a outras instituições semelhantes no Reino Unido, como o do NIHR, e outros institutos”.

A oradora destacou ainda o papel das associações de doentes no financiamento da investigação, uma realidade distinta da portuguesa, e explicou o modelo que “o modelo NIHR funciona porque há formação dada aos profissionais de saúde, há recursos dados às instituições, há parcerias desenvolvidas entre o tecido empresarial e os hospitais, e há participação e colaboração da academia”, gerando emprego em diversas áreas e colocando o dinheiro a circular em vários sectores. Mas “é necessário um grande investimento para que isto aconteça” e não são estruturas leves. “Há uma parte de gestão e de estratégia que tem de ser efectivamente feita ao nível do governo e com políticas públicas”, defendeu.

“Acho óptimo que tenhamos a ambição de nos compararmos e é aí que eu quero ver Portugal, mas, em termos de desenvolvimento económico, nós não estamos no pelotão da frente. Fazer um salto e uma mudança qualitativa naquilo que é o tecido industrial e nos sectores de actividade onde podemos gerar valor, é um problema”.

A docente defendeu ainda que temos que ter consciência que os recursos são, efectivamente, escassos em Portugal e todos os dias são tomadas decisões difíceis entre as áreas onde o dinheiro vai ser investido. “Em termos de sociedade, é preciso que alguém pense qual é a melhor forma de conseguir maximizar os recursos para os portugueses”, afirmou.

José Dinis considera que Portugal tem resultados que estão no topo dos países da Europa no que respeita à eficiência. “Acho que poderíamos ser mais competitivos nesta área”, afirmou. A investigação clínica faz-se com doentes e, apesar de Portugal ter institutos muito desenvolvidos nesta área, como o Ipatimup, no Porto, e o IMM, em Lisboa, “não têm doentes. Os doentes estão nos hospitais”.

O director do PNDO da DGS afirmou que “a autonomia dos hospitais mata a investigação clínica em Portugal e o acesso e participação em grandes desenvolvimentos”. Na sua opinião, o investimento existe, mas falta organização e a agilização de estruturas. “Nós temos mecenas e doadores, mas não há uma política nacional para este sector”. No entanto, é preciso que “haja disponibilidade de espírito dos políticos para entender que, no final do dia, isto paga-se”, adiantou. “Este é um sector do mais rentável que há, mas também dos mais competitivos e é o que traz valor ao País”.

Portugal precisa de não viver de costas voltadas para os outros. Partilhar as boas práticas e a informação entre todos é crucial. “Precisamos de autonomia, de recompensa para quem se dedica à investigação clínica, de incentivo e valorização profissional, mas também precisamos de pôr todos a trabalhar em conjunto”, salientou Heitor Costa, aproveitando para divulgar a criação do Portal de Ensaios Clínicos, pela Apifarma, com previsão de lançamento para este mês Outubro.

O impacto da pandemia de Covid-19

“Podemos dizer que 85% dos portugueses acredita e confia na inovação”, referiu Céu Mateus, tendo em conta o total de pessoas vacinadas contra a Covid-19 à data de realização desta conferência. “As pessoas perceberam, em relação ao caso concreto da Covid-19, o valor de ter um Serviço Nacional de Saúde centralizado, de se poderem organizar os serviços de determinada maneira apesar das falhas e de constrangimentos que existiram e da pressão do que é trabalhar nestas condições durante todo este tempo”, adiantou.  Relativamente à gestão do processo, em termos globais, “o desempenho foi bastante positivo”, defendeu a professora catedrática.  

“A pandemia entrou como um grande turbilhão. As doenças oncológicas foram das áreas mais afectadas, basta ver a redução nos rastreios, por exemplo”, explicou José Dinis. E o verdadeiro impacto da pandemia nos doentes oncológicos só será visível daqui a uns anos. “Os centros de saúde fecharam e foi mais difícil diagnosticar patologias precoces que estão em fase curativa. Em 2024/2025, talvez seja possível começar a fazer o balanço”. Como uma das áreas mais inovadoras da oncologia, o orador destacou a   medicina de precisão: “1/3 dos cancros diagnosticados são doenças raras” e a medicina de precisão permite oferecer testes genéticos. “No IPO do Porto, temos um programa público em que recebemos doentes do País inteiro e isto vai ao encontro ao Plano Europeu”, destacou.

Heitor Costa acrescentou que “a abordagem da pandemia contribuiu para todos nós percebermos o valor da inovação” e destacou que os processos de aprovação podem ser acelerados, como aconteceu com as vacinas contra a Covid-19. “Conseguimos tornar a inovação mais célere e a quantidade de vacinas negociada com a Comissão Europeia para cada um dos países europeus foi distribuída nos mesmos dias, tendo por base apenas o critério da dimensão populacional. Estivemos todos equitativamente a receber vacinas na mesma altura”, afirmou. Comparativamente, a área da oncologia, se diagnosticada precocemente e tratada de forma adequada, é uma doença que tenderá a evoluir para situações de mortalidade menos acentuada e dará mais qualidade de vida às pessoas que estão a sofrer de um problema oncológico. “Perante circunstâncias iguais, se queremos construir uma Europa digna desse nome, temos de trabalhar nesse sentido”, concluiu o director executivo da Apifarma.

Céu Mateus rematou com a esperança de que a melhoria generalizada das condições de vida permita apostar mais na prevenção e nos estilos de vida saudáveis – se conseguirmos melhorar e modificar algumas circunstâncias de vida da população, também conseguimos melhores resultados em saúde. “Portugal, atendendo às suas circunstâncias e às suas condições económicas, consegue ter um arsenal terapêutico muito avançado, e, em muitos países, há medicamentos que nem sequer são levados à discussão porque não há capacidade para financiar esses tratamentos”, disse a docente. “A inovação é desejável, mas há sempre um desafio de sustentabilidade financeira dos sistemas que temos de ter em consideração.”

A inovação deve estender-se a várias vertentes, desde a prevenção, o diagnóstico, o tratamento, até ao seguimento dos doentes em risco, defendeu José Dinis. “O Programa Nacional para as Doenças Oncológicas funciona como uma estrutura dentro do Ministério da Saúde, que tenta estar atento ao que se passa na realidade portuguesa e dar contributos que possam ajudar a definir políticas públicas que melhorem o nível do acesso.” Na sua opinião, o Programa Nacional para as Doenças Oncológicas em linha com o Plano Europeu constitui “uma oportunidade histórica e, se calhar, irrepetível, para que Portugal dê algum salto e se aproxime das melhores práticas mundiais. Todos estão convocados para este grande desafio”, rematou.