Em ciência a distância também conta
Em ciência também se discrimina e, embora haja muitos outros parâmetros e se acene com mantras como o “mérito absoluto”, em Portugal o centralismo e a distância (não linear) a Lisboa é um dos problemas. Quem lá trabalha tem vantagens claras de proximidade e acesso a decisores.
Lisboa é uma cidade que aprecio imenso, e que gosto de visitar. Na verdade, cientistas têm de se deslocar à capital mais do que a qualquer outra cidade, porque é lá que se encontram as entidades que definem a política científica nacional (ministérios, Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Ciência Viva, Assembleia da República). Ou seja, mesmo que não gostasse não tinha grande remédio. Como me explicou o saudoso professor Agostinho Almeida Santos, se não comparecermos quando nos convocam para discussões arriscamo-nos a que surjam diretivas com que não concordamos. Não que isso não aconteça de qualquer modo, mas sem ir não podemos ter o descargo de consciência de ter sido ouvidos.
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Lisboa é uma cidade que aprecio imenso, e que gosto de visitar. Na verdade, cientistas têm de se deslocar à capital mais do que a qualquer outra cidade, porque é lá que se encontram as entidades que definem a política científica nacional (ministérios, Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Ciência Viva, Assembleia da República). Ou seja, mesmo que não gostasse não tinha grande remédio. Como me explicou o saudoso professor Agostinho Almeida Santos, se não comparecermos quando nos convocam para discussões arriscamo-nos a que surjam diretivas com que não concordamos. Não que isso não aconteça de qualquer modo, mas sem ir não podemos ter o descargo de consciência de ter sido ouvidos.
Do ponto de vista prático, quem vem de fora de Lisboa tem de condicionar pelo menos um dia de trabalho, enquanto os colegas locais apenas “perdem” o tempo da reunião. Mas não é só isso: ao longo destes anos tornou-se óbvio que os colegas de Lisboa são desproporcionalmente ouvidos em todas as matérias relevantes, sendo por vezes até fácil identificar quem fez pressão sobre a tutela para determinada diretiva. Embora desagradável, isto parece-me, sem ironia, natural.
O poder está todo em Lisboa, o recrutamento local para os diversos órgãos é lógico, o que depois faz com que governantes e investigadores se cruzem nas suas instituições, e as acabem por confundir com o país. Na prática, resulta que é muito mais fácil resolver um problema se colegas de Lisboa se queixarem do mesmo, como é mais linear implementar uma política nacional se eles já estiverem prontos a implementá-la. E mais difícil quando não é o caso. Claro que há ainda pior, nomeadamente o cuidado a ter ao levar uma ideia inovadora a decisores em Lisboa, porque instituições da capital podem, misteriosamente, vir a ter a mesmíssima ideia pouco depois, quando não reivindicar a sua maternidade. Na periferia não baste ser-se bom, é preciso a arte adicional de cultivar nichos difíceis de reproduzir. E não era infrequente chegar a reuniões na capital (por vezes marcadas para horas que em nada convinham a quem vinha de fora) e encontrar colegas de Lisboa, já a ter uma “pré-reunião” com a tutela em causa.
Em resumo, em ciência também se discrimina e, embora haja muitos outros parâmetros e se acene com mantras como o “mérito absoluto”, em Portugal o centralismo e a distância (não linear) a Lisboa é um dos problemas. Quem lá trabalha tem vantagens claras de proximidade e acesso a decisores, mesmo que nem dê conta.
É certo que há vários tipos de discriminação na nossa sociedade, e não quero de modo algum menorizá-los quando falo deste. Mas os sinais são os mesmos. Desde logo: quem se sente discriminado tende a maximizar os inconvenientes e a colocá-los no centro da sua análise (exatamente o que faço aqui). Por outro lado, os privilegiados (em ciência mais os “não tão discriminados”) tendem a não reconhecer a vantagem que têm, a minimizá-la nas raras vezes em que a admitem, a queixarem-se de outros colegas de Lisboa “mais privilegiados” (esta é muito comum), a considerar a sua circunstância geográfica enquanto desvantagem porque lhes ocupa tempo precioso (estão sempre a ser chamados para assuntos governativos, o que é também uma vantagem); ou, no limite, até a fazerem-se de vítimas, demonizando qualquer ferramenta que não esteja sobre o seu controlo direto (como os fundos estruturais para as regiões, que na ciência, em grande medida, foram cooptados por Lisboa), e dizendo aos supostos desfavorecidos que “se fossem mesmo bons se safavam”.
Também é curioso verificar que o centralismo chega a ser defendido mais acirradamente por “transplantados” para a capital, um pouco como recém-convertidos a uma ideologia tendem a ser mais radicais do que os que a professam há décadas.
As iniciativas que de algum modo implicam a instalação de estruturas científicas noutros locais são um bom ponto de partida (tem de se começar por algum lado...), mas algo limitado até agora. Para além de pontuais, e o verdadeiro cerne continuar em Lisboa, tendem a favorecer atividades, instituições e individualidades já existentes nesses sítios. O que se percebe, mas não cria novas dinâmicas. Outras iniciativas que vão surgindo, independentemente dos motivos, são menorizadas com argumentos muito válidos, mas que evitam a questão principal. Num país em que a total centralização é a norma, o corolário lógico é que não é possível tirar rigorosamente nada de Lisboa, porque a interligação é tanta que todos os elaborados castelos de cartas institucionais ruiriam se faltasse uma só das peças. Esta não é uma resposta séria; sobretudo é inútil enquanto ponto de partida de qualquer discussão. E é exatamente por isso que é tão usada.
A outra argumentação por estes dias é que agora as reuniões por videoconferência, ou diferentes formas de teletrabalho, podem ajudar a mitigar estes problemas, se é que existem. Numa palavra? Não. As reuniões que importam descodificam-se nos intervalos para café, no final, nos almoços. Posso dizer, com segurança, que só percebi o alcance total de muitas das mais importantes políticas científicas nacionais recentes (sobretudo as más e as péssimas) após as apresentações (erroneamente designadas “discussões”) oficiais, falando com colegas e governantes logo no momento, algo que é difícil por Zoom.
E, se fosse mesmo tão evidente a vantagem do teletrabalho, não haveria tanta resistência em deslocalizar instituições para dinamizar o interior e, além de tribunais de prestígio, a Fundação para a Ciência e a Tecnologia, por exemplo, podia perfeitamente mudar-se para Beja, ou para a Guarda (fica desde já a sugestão). Se a videoconferência poupa tempo em deslocações e é uma solução interessante, se devidamente usada, tivemos dois anos para perceber que o seu uso constante também cansa, aliena e, lá está, distancia. Ajuda sobretudo quem já está em Lisboa, e pode complementar videoconferências dirigidas a todos com reuniões particulares com a tutela, como já faz. Nessa perspetiva a videoconferência só tende a centralizar ainda mais a decisão.
Termino com lamentos que ouvi em Bruxelas, a funcionários e dirigentes, quanto à posição periférica de Portugal. Queixavam-se amargamente do problema que era a distância aos grandes eixos europeus, e que os fazia ter de trabalhar muito mais do que colegas alemães ou franceses para conseguir algo de relevo para o nosso país. Os que hoje trabalham em Lisboa tendem a ser, sem hesitação, centralizadores nacionais convictos. É fascinante ver as lições que (não) se aprendem.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico