Despejos ilegais pelo Estado ou a desumanização total dos serviços públicos

Construir uma alternativa começa pela criação de uma consciência colectiva de que o direito à habitação é central para o acesso a todos os outros e tem de ser efectivado de forma universal e inalienável.

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Miguel Manso

Assistimos nos últimos meses a uma vaga massiva de despejos em bairros geridos pelo Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU) cujo papel é ser “a entidade pública promotora da política nacional de habitação”, situação irónica e sintomática de tempos em que a pobreza e a violência foram banalizadas.

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Assistimos nos últimos meses a uma vaga massiva de despejos em bairros geridos pelo Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU) cujo papel é ser “a entidade pública promotora da política nacional de habitação”, situação irónica e sintomática de tempos em que a pobreza e a violência foram banalizadas.

As situações são variadas e espalham-se por todo o país, mas o caso do Bairro de Cabo Mor é paradigmático das contradições das instituições públicas face a agregados com extrema carência habitacional, dando provas de que não estão comprometidas com a resolução do problema da habitação.

O Estado desresponsabiliza-se duplamente das suas obrigações: primeiro por não garantir a estes agregados carenciados o acesso a uma habitação digna e segundo por não lhes garantir uma alternativa digna no processo de despejo. Fazem-no porque estas famílias ocuparam as casas e quando confrontados com o pedido de regularização da situação, utilizam o argumento de não poderem “premiar aproveitamentos”.

Mas há um ponto essencial a que não devemos fugir: o que levou estas famílias a ocupar as casas?

A sobrelotação em que viviam com os filhos em casa dos pais; estar na lista de espera há anos, sem solução; serem acompanhadas pelos serviços sociais que não apresentam soluções viáveis, quer em orçamento quer em localização; serem marginalizadas no acesso ao emprego pela sua condição social ou etnia; terem empregos precários e instáveis que não lhes permitem aceder ao mercado privado; depararem-se com uma pandemia que lhes pede que fiquem em casa quando não têm nenhuma. Pode ser uma das razões anteriores, ou todas.

Como chegamos aqui?

Para produzirmos um debate consequente é preciso adereçar mais do que a questão particular e olhar para a questão da habitação como um todo. A habitação é hoje um dos pilares do mercado financeiro internacional, um dos mais lucrativos e com investimento de menor risco. É este lucro potencial através da habitação, que a torna uma mercadoria tão apetecível para a acumulação infinita de capital transnacional. Aliado a que, nas últimas décadas, as políticas de habitação foram transferindo uma função que é do Estado para a esfera privada do mercado, transformando a maioria das famílias portuguesas em proprietárias — mas que pagam renda durante toda a vida ao banco. Este abandono de responsabilidades impede-nos de ver a habitação como um direito, equivalente ao direito à saúde ou à educação e inclusivamente a estigmatizar e culpar aqueles que nunca conseguiram aceder ao mercado. Contudo, temos visto que a habitação está presente em todas as agendas eleitorais. Porquê? Simples. Porque o problema tomou proporções tais que afecta quem pensava ter rendimentos para navegar livremente no mercado.

Vimos que o Estado não cumpre as suas obrigações, e com isso surge a questão: onde estão as soluções habitacionais para as pessoas que não auferem rendimentos para encontrar uma casa adequada no mercado ou contrair um empréstimo? Esta também é simples: são encaminhadas para habitação social. No entanto, se formos honestos, sabemos que o parque habitacional público é escasso e sofre de desinvestimento crónico. Além disso, têm sido aplicadas alterações aos programas que permitem atribuir as poucas casas públicas existentes a quem pode pagar um pouco mais. Através dos sorteios, da revisão dos regulamentos ou da transferência de tutelas, as habitações vão tendo as suas rendas liberalizadas para conseguirem chegar a um público com mais capacidade económica.

Temos ouvido a promessa do Governo de atribuir 26 mil casas, até 2024, a famílias que necessitem de realojamento. Este número é insuficiente e, já todos sabemos, continua por fazer um verdadeiro levantamento de quantas serão as pessoas em situação de sem-abrigo, sobrelotação, insalubridade, sobrecarga com a renda, pobreza energética, em casas tipo ilha ou barracas, ou longe do sítio onde trabalham e estudam?

Para concretizar esse objectivo, alguns dos realojamentos passarão por utilizar património público devoluto. Qual não deve ter sido a desilusão do IHRU quando percebeu que casas que deixou durante anos abandonadas e degradadas, no bairro de Cabo Mor e em tantos outros, estavam agora com paredes pintadas, mobília e roupa a secar. Os agregados que, por todo o país, ocuparam estas casas fizeram o esforço de substituir as obrigações do Estado, cuidaram delas como podiam, recomeçaram as suas vidas, providenciaram da melhor maneira que conseguiram estabilidade aos seus filhos.

Estas famílias estão agora a ser processadas pelo Estado.

Fruto da invisibilização sistémica destas famílias, no bairro em Vila Nova de Gaia pudemos assistir à tentativa do Estado de levar a cabo as acções de despejo sem grande alarido. Para isso, os truques foram variados (a palavra truques poderia ser substituída por ilegalidades): ameaças com a protecção de menores; falta de papéis para se poderem defender legalmente; não apresentação de alternativas habitacionais dignas (como manda a lei pela qual se rege o património público); ou ameaças de que terão de pagar pelo tempo que ocuparam a casa e que lhes cobrariam rendas de 500 euros.

Se o simples facto de estarem a despejar famílias de habitação pública, sem dar uma alternativa digna, não fosse suficiente, isto somado espelha a desumanização total dos serviços públicos e de que ser pobre continua a significar ter menos direitos.

Apesar de brutal, esta violência é silenciada. As pessoas afectadas são excluídas e vulnerabilizadas pelas condições socio-económicas e silenciadas por não serem vistas como uma ameaça ou por não lhes serem dadas as ferramentas para lutarem por um direito que é de todos.

Ora, não é ilegal deixar uma casa abandonada durante décadas com famílias em lista de espera por habitação, mas é ilegal ocupar essa casa quando não temos onde dormir?

Não é ilegal despejar sem alternativa habitacional, mas é legal encaminhar famílias com crianças para o aluguer de um quarto, ou de uma ilha insalubre?

Não é ilegal o assédio com a protecção de menores? Não é ilegal entaiparem as portas com tijolos enquanto uma família dorme dentro da casa, como testemunhou uma moradora do bairro de Cabo Mor, em Vila Nova de Gaia?

Reivindicar o acesso a uma habitação digna passa a ser o grau zero porque, quando o Estado é conivente com a transformação da habitação num privilégio, ocupar passa a ser um direito.

Torna-se urgente reivindicar uma ruptura com este sistema assistencialista, que individualiza o problema da habitação e que, alienado das condições materiais de tantas famílias, decide começar a resolver o problema de cima para baixo. Construir uma alternativa começa pela criação de uma consciência colectiva de que o direito à habitação é central para o acesso a todos os outros e tem de ser efectivado de forma universal e inalienável.