A democracia portuguesa está viva
Mesmo com um retrato sem partidos a poder reclamar vitórias inequívocas, a noite autárquica não se fez apenas do protagonismo, talento ou saber dos candidatos. É impossível não haver na leitura dos seus resultados um Zeitgeist que aponta os limites da ambição do PS e de António Costa.
A uma semana de distância, as sondagens e as expectativas apontavam para umas eleições autárquicas rotineiras, simplesmente limitadas ao cumprimento de um calendário. Aconteceu o contrário. Como em momentos decisivos da história política do país, como em 2001 ou em 2017, as autárquicas deste domingo valem não apenas pelas disputas locais e assumem um incontornável significado nacional. O PS continua a dominar o mapa autárquico, mas sai das eleições debilitado pela sensação nítida de que o seu poder atingiu o limite e deixa de gerir a hegemonia para ser forçado a recuperar a perda. Quem ganha a noite é claramente o PSD, que sai do buraco negro a que parecia condenado e ressuscita com fôlego para outros voos. E, no balanço global da noite, há uma outra estrela em ascensão: chama-se Carlos Moedas e é o novo presidente da maior câmara do país.
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A uma semana de distância, as sondagens e as expectativas apontavam para umas eleições autárquicas rotineiras, simplesmente limitadas ao cumprimento de um calendário. Aconteceu o contrário. Como em momentos decisivos da história política do país, como em 2001 ou em 2017, as autárquicas deste domingo valem não apenas pelas disputas locais e assumem um incontornável significado nacional. O PS continua a dominar o mapa autárquico, mas sai das eleições debilitado pela sensação nítida de que o seu poder atingiu o limite e deixa de gerir a hegemonia para ser forçado a recuperar a perda. Quem ganha a noite é claramente o PSD, que sai do buraco negro a que parecia condenado e ressuscita com fôlego para outros voos. E, no balanço global da noite, há uma outra estrela em ascensão: chama-se Carlos Moedas e é o novo presidente da maior câmara do país.
Os que receavam uma hegemonia sem fim à vista do PS, os que temiam que em Portugal estivesse a nascer partido semelhante ao PRI mexicano, inabalável e inamovível, puderam afinal dar-se conta que a democracia está dinâmica e viva. Não faz sentido dizer que o PS ou António Costa estão feridos de morte, mas pode dizer-se que saíram destas eleições mais vulneráveis. Como não faz sentido dizer que, num golpe de mágica, o PSD e Rui Rio renasceram e recuperaram uma aura de vitória que há muito parecia distante. Pode-se, sim, dizer que as tendências a prazo se reequilibraram. Que o PS sai da noite deste domingo abalado e o PSD animado. Ou, por outras palavras, que o quadro político estagnado, previsível e com evidentes sintomas de anomia se alterou. A democracia portuguesa deu prova de vida com esta mudança.
Independentemente do número de câmaras ganhas e perdidas, o PS estremece em lugares cruciais do mapa político. Perde o Funchal. Sai humilhado de Coimbra, onde estava o seu presidente da Associação Nacional de Municípios. Sofre uma derrota histórica no Porto, que traduz a negligência com que tratou a segunda cidade do país. Ganha Loures. Mas perde Lisboa através da derrota do delfim de António Costa. Fernando Medina partiu para esta disputa contra um adversário razoavelmente desconhecido e numa posição favorável. Ser derrotado assim é mais do que um fracasso pessoal. Por muito que seja culpabilizado por erros próprios, acaba penalizado por um PS combalido. Que só sai da refrega pelo seu próprio pé à custa das perdas da CDU, que continua a ser o saco de boxe onde os socialistas alimentam as suas ambições de domínio do poder local.
Se há quem possa reclamar louros de vitória é, por isso, Rui Rio, o PSD e Carlos Moedas. Rio porque consegue travar o descalabro do partido num terreno, o das autarquias, que sempre lhe serviu de esteio para as suas ambições nacionais. O que o PSD conseguiu no Porto, Funchal, Coimbra, Portalegre e Lisboa basta para travar a sua caminhada para a irrelevância. Mesmo que não acrescente muitas mais autarquias, o partido foi além do “poucochinho” e Rui Rio tem hoje muito mais liberdade para ser dono do seu futuro político: se quiser continuar será mais difícil de bater, se quiser sair pode fazê-lo sem arrastar consigo o espectro da derrota. Sobra, ainda assim, Carlos Moedas. Pode ter nascido uma estrela para brilhar no futuro do PSD.
Sobra ainda uma avaliação dos restantes partidos e aqui pode estar o único factor (juntamente com a abstenção) que ensombra a imagem de vitalidade da democracia: o mapa autárquico parece ter ficado ainda mais rosa e laranja. Quem mais contribui para essa perda de cor é a CDU, cada vez mais irrelevante nos territórios onde criou raízes históricas. Jerónimo de Sousa voltou a falar de uma importante força do poder local, mas, depois de duas eleições consecutivas a acumular derrotas, a CDU dá de si uma pálida imagem de vigor. Uma irrelevância onde continua o Bloco (apesar dos resultados no Porto e Lisboa). Uma irrelevância à qual o CDS se conseguiu furtar.
Mesmo com um retrato sem partidos a poder reclamar vitórias inequívocas, a noite autárquica não se fez apenas do protagonismo, talento ou saber dos candidatos. É impossível não haver na leitura dos seus resultados um Zeitgeist que aponta os limites da ambição do PS e de António Costa. Nada está decidido para o futuro próximo, mas, na ressaca da eleição, o horizonte das legislativas de 2023 é hoje mais incerto do que ontem. António Costa, com o seu proverbial tacto político, percebeu-o bem. Por isso correu o país nestas autárquicas como se o poder político do PS estivesse ameaçado. Como se viu nestas eleições, estava.