As linhas
O que determina afinal o momento em que decidimos partir sem esperar mais um dia? Sem dar à esperança a hipótese de nos devolver qualquer coisa que nunca pareceu estar lá?
A verdade faz-nos mais fortes
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Cheguei à estação atrasada. O táxi perdeu-se num desvio e tardou a encontrar a chegada.
Abrir a porta de casa é o que mais quero mas em nenhum momento perco a calma. Penso com clareza que há missões mais difíceis do que esta de apanhar o comboio seguinte.
Estou na bilheteira para comprar o meu lugar de regresso, então, olho para o painel com as partidas e apercebo-me que o comboio perdido ainda não arrancou. Corro para a plataforma oito, esbaforida. Lembrei-me de quando um amigo americano me perguntou se eu não corria mais depressa e eu lhe respondi: só pelas coisas que valem a pena. Ali era a vontade de chegar a casa. Corro muito, e, já na plataforma, ouço a informação de que o comboio está com meia hora de atraso. Uma partida do destino. (Não será só isso como ficarei a saber depois.)
Ligo à taxista que me trouxe e explico-lhe que vou conseguir apanhar o comboio. Ela que começara a suar enquanto nos enredávamos num caminho sem fim, agradece-me. Eu conheço ali um momento apaziguador, aquele que nasce das coisas que às vezes encaixam.
Enquanto escrevo agora, recuo até às manhãs em que apanhava o metro entupido de gente e uma angústia pairava no ar de cada vez que havia atrasos na circulação. Raras vezes ouvi “erro humano”. Muitas vezes era a soma da nossa errância pela vida e vontade de lhe por um fim. Um fim que começava de manhã. E eu quase perdia a vontade de enfrentar o dia sabendo que alguém teria encontrado razões para não viver mais. A nossa flexibilidade tem de ir até ao insuportável que a dor dos outros não consegue conter. Nós não conseguimos todos conter a dor da mesma forma e se não compreendermos isso, nunca vamos compreender o outro.
Volto a esse fim de tarde com um comboio atrasado. Sei entretanto que o atraso na circulação se ficou a dever a um incidente. Ou acidente? Envolve a retirada de alguém próximo da linha. Uma nova angústia mistura-se com esse alívio cansado de chegar a casa. Quando me sento no comboio fecho os olhos mas não durmo. Assimilo tudo o que a vida me deu nesse dia. As somas tornam-se grandes à medida que vivo e o pensamento se estende. (Eu já pensava muito em miúda mesmo sem ter vivido o suficiente.)
Chego a casa. Sinto a alegria do regresso quando cheiro a sala e tudo está no seu lugar. Conto a aventura de uma chegada tardia mas ainda a tempo. Dormirei cansada.
Não é imediatamente no dia a seguir mas dias depois que fico a saber que a mãe da amiga de uma amiga se suicidou. Viveu muitos anos com uma depressão profunda, tão profunda que alguém distraído pode dizer: “Mas como sempre triste se vivia bem, se tinha família e netos que nos trazem alegrias?” Alguém distraído pode de facto dizer isto. Alguém consciente da importância de uma depressão e de como não temos todo o controlo sobre o que se passa em nós, não o dirá. E não o dirá por respeito. Até pela sorte de não passar pelo mesmo. O respeito tem muitas linhas. Temos a obrigação de embarcar em todas.
Pensei naquela mulher sem a conhecer. O que determina afinal o momento em que decidimos partir sem esperar mais um dia? Sem dar à esperança a hipótese de nos devolver qualquer coisa que nunca pareceu estar lá? Sem esse diálogo com a fé do dia seguinte em que um gesto qualquer nos faz sentido e ficamos por cá e abraçamos ainda mais quem amamos ou vemos a imponência do céu a cair-nos no olhar e agradecemos a possibilidade de estar aqui? É verdade, as pessoas pedem sinais que lhes façam sentido mas às vezes não os encontram.
A mulher que nunca conheci e que decidiu partir antes do tempo, foi a mesma que me fez correr esbaforida para a plataforma para apanhar um comboio atrasado. Foi ela que naquela tarde não suportou mais a existência triste em que mergulhara há muitos anos.
A dor de cada um é imensurável. Agora e na hora da nossa morte.