Homens, venham trabalhar para a escola!
É mais difícil encontrar um educador de infância do sexo masculino do que um tigre na Serra da Malcata, e mesmo na primária são uma espécie rara. E tenho a certeza absoluta de que isto não é uma coisa boa.
Querida Ana,
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Querida Ana,
Quero fazer uma birra por mais homens na escola e no jardim-de-infância!
A sério, embora já tivesse a percepção de que a escola é um lugar de mulheres, fiquei chocada com os números que encontrei no recém-publicado Educação em Números, referente aos anos de 2005 a 2020. Toma nota daquilo a que chamam “taxa de feminidade”: é de 99% no pré-escolar, de 87% no 1.º ciclo, e 72% no 2.º e 3.º ciclos.
Ana, o que isto quer dizer é que é mais difícil encontrar um educador de infância do sexo masculino do que um tigre na Serra da Malcata, e mesmo na primária são uma espécie rara. E tenho a certeza absoluta de que isto não é uma coisa boa, mas não vejo ninguém preocupado com as quotas neste sector.
É claro que haverá logo quem venha contestar a minha birra dizendo-me que se não há mais é porque eles não querem ser educadores ou professores — o exacto mesmo argumento que é utilizado para justificar a ausência de mulheres na política ou nas administrações das empresas. Não serve.
Ainda para mais porque tradicionalmente os professores primários eram homens, e se desapareceram da escola alguma razão haverá — talvez não queiram mergulhar num mundo só de mulheres, provavelmente a profissão ficou de tal forma associada a um território feminino que a pressão é grande para que um rapaz não venha a ser professor.
Mas o que sei, e me preocupa muito, é que quando fiz a pergunta a uma responsável por uma instituição de formação de educadores de infância, a resposta foi de que os jardins-de-infância e as escolas primárias tendem a preferir contratar uma mulher porque os pais associam professores-homens à pedofilia e ao abuso. Não querem que sejam eles a levar as meninas à casa de banho, e que cuidem delas de forma mais próxima. Não queria acreditar, mas juro que foi o que me disse.
A minha birra ganhou a partir daí ainda mais força. Quero mais professores na escola!
Por isso, Ana, ajuda-me a reforçar a minha causa, respondendo-me a duas perguntas:
1. É verdadeira a minha intuição de que sobretudo os rapazes ganham muito em terem como educador ou professor um homem? Que eles ficam muito menos histéricos com as “lutas” e a irrequietude dos rapazes do que as educadoras/professoras? Que os deixam aventurar-se mais, e tendem a valorizar mais o conteúdo do que a forma (limpinha, arrumadinha, sublinhadinha a muitas cores, como muitas meninas gostam?).
E 2. será que os pais estão loucos, e imaginam que todos os homens que gostam de crianças, que têm vocação para trabalhar com elas, são potenciais abusadores?
Preciso das tuas respostas com urgência.
Querida Mãe,
Desconhecia os valores exactos dessa tal “taxa de feminidade”, mas não me surpreende. Durante todo o meu curso em Educação de Infância tive dois colegas. E mesmo enquanto mãe, tirando os professores de Educação Física, ninguém tem dúvidas de que é um mundo dominado por mulheres. Mas fiquei também muito chocada com o que me conta sobre a desconfiança em relação a abusos: aparentemente (e infelizmente) parece não ser uma percepção rara, nem sequer exclusivamente nacional, resultando de uma mistura de preconceito de uma sociedade machista que se pergunta “Por que raio é que um homem quereria trabalhar com crianças?”, com a crescente mediatização de abusos sexuais e uma narrativa distorcida acerca de homens “perigosos”. O mais curioso é que pode ser exactamente um sintoma da falta de homens na escola.
Já aqui voltamos, mas vamos primeiro à sua intuição: quando os resultados académicos das raparigas começaram a revelar-se mais elevados do que os dos rapazes, os investigadores tentaram perceber porquê. Surgiram estudos/artigos/debates a questionar se a “feminização da escola” não estaria a prejudicar os rapazes alegando que, como a mãe argumenta, os homens estavam mais sincronizados com a forma com que os rapazes aprendem e se desenvolvem ou, ainda, como maneira de compensar a ausência de uma figura parental masculina. Estes argumentos foram refutados pela evidência. Os estudos mostram que o género do professor não afecta os resultados. O que não é o mesmo que dizer que rapazes e raparigas aprendem da exacta mesma forma, ou passam simultaneamente pelas mesmas fases de desenvolvimento — ou seja, um professor atento a essas diferenças, será um melhor professor, seja homem ou mulher.
Espere, espere, mãe, isto não quer dizer que não sejam precisos mais homens na escola, e que a sua birra não tem fundamento. Ter mais homens na escola permite às crianças mais modelos com que se podem identificar. E é mesmo importante que as crianças convivam, aprendam e brinquem com pessoas que são “diferentes delas”, ou seja ganham com isso os rapazes, mas também as raparigas. Mas, também, porque a presença de mais homens na escola, permitem-lhes assistir a relações saudáveis de trabalho, cooperação e amizade entre homens e os seus pares (homens ou mulheres) e, ainda, entre homens e crianças.
E assim voltamos ao medo dos pais de que um educador cuide dos seus filhos: falta-lhes o contacto com — como é que a mãe dizia?... Ah, já sei, “exemplares da espécie” naquele papel. Faltam-lhes bons exemplos, falta-lhes o feedback dos seus filhos. Afinal ouvem histórias terríveis nos meios de comunicação social, e depois não têm casos reais, positivos, próximos, que desmintam a generalização.
E por fim, se queremos realmente acabar com a ideia de que há profissões “só para raparigas ou só para rapazes” não basta lutar para que as mulheres possam ser astronautas, é preciso também batalhar para que os homens possam abrir o seu leque de opções de trabalho. Por isso junto-me a si na sua birra!
Beijinhos
No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Mas, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram.