O peito cheio
A minha festa de aniversário tardou porque eu nunca tinha encontrado os meus amigos. Aqueles que me disseram as primeiras palavras com o sentido que eu procurava.
Demorei muito tempo a ter uma festa de aniversário, aliás não me lembro sequer de quando terá sido a primeira.
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Demorei muito tempo a ter uma festa de aniversário, aliás não me lembro sequer de quando terá sido a primeira.
A minha mãe todos os domingos fazia bolos que eu comia ainda quentes: bolos fatiados que podiam ser de mármore ou de laranja, ou então queques nas forminhas salpicadas de farinha depois de a manteiga derreter no encontro com o alumínio. Eu contava as horas para podermos desenformar a alegria daquele dia que era especial porque a comida também era diferente. Lembro-me de o lanche ser às cinco da tarde mas com o tempo e a ansiedade a crescer dentro de mim, antecipei a hora do lanche em meia hora. Quatro e meia e eu já a escaldar os deditos. Voltaria a esse momento só para a minha mãe me fazer os bolos de novo.
A festa de aniversário nunca aconteceu porque talvez eu não soubesse bem quem convidar. Naquele mundo que era meu cabiam de facto poucas pessoas. Vi-me quase sempre sozinha até ser crescida. Fazendo agora mais um exercício de memória e se num flash me perguntassem qual era a imagem que podia resumir a minha infância, diria que era ao lado da minha mãe a observar o que se passava em volta: em volta havia miúdos aos gritos, pendurados em sítios improváveis, aquela má-educação a que os pais fecham os olhos ainda hoje, mas ali, no meu passado, já com eles empoleirados aos guinchos, eu abria muitos os olhos e ficava em silêncio a registar tudo. Era pequena. Tinha a minha mãe ao lado. Estávamos num consultório médico ou numa carruagem de comboio. Eu em silêncio.
Fui essa até descobrir a minha voz.
A minha festa de aniversário tardou porque eu nunca tinha encontrado os meus amigos. Aqueles que me disseram as primeiras palavras com o sentido que eu procurava. Hoje em dia os pais organizam as festas dos filhos e só depois descobrirão, muito depois, quem são os amigos deles. Enchemos mais o vazio. Tememos a nitidez que ele nos devolve.
Não foi portanto por falta de bolos que nunca se fez a festa, mas pela minha impossibilidade de encontrar gente que gostasse do mesmo sabor que eu.
Hoje em dia percebo a urgência da minha filha em encontrar as pessoas que lhe dirão as palavras que ela quer ouvir. No caso dela, não estão no TikTok.
Quando encontrei a Nancy na escola foi uma felicidade e tanto. A Nancy era uma miúda com espírito de líder que tinha nascido no Canadá e tinha uma cara diferente. Tudo nela era diferente: a forma de vestir e de pensar, a forma como ria ou comandava o seu grupo. Eu era uma adolescente triste que queria amigos e encontrei-os a todos no mesmo ano. As pessoas que me fizeram sentido e onde me demorei o resto da vida foram difíceis de encontrar, mas valeu muito a pena.
A partir do momento em que eu e ela descobrimos que ouvíamos Simon & Garfunkel, e mais umas coisas que os nossos irmãos nos tinham passado, a magia aconteceu. A magia é a amizade que nos enche o peito e nos vai trazer dores difíceis de suportar e alegrias maiores que o nosso tamanho.
Quando a Nancy mais tarde voltou ao Canadá para perceber se a vida fazia mais sentido ali, escrevemo-nos durante esse tempo todo. (Ainda guardo algumas coisas que me enviou). Na ausência dela, encontrei outros amigos. E no seu regresso havia já um caminho diferente trilhado mas não um rasto que se apagasse.
A nossa vida foi-se encontrando e desencontrando como acontece entre amigos. Temos de lutar para que o tal caminho não se esfume. Os maridos, namorados, amigos e conhecidos ajudam tantas vezes a esbater essa coisa séria chamada amizade. Não há mal nenhum nisto: aceitamos e seguimos em frente sem perder o respeito pela memória e a gratidão do encontro e da colecção de memórias que nos fazem sorrir até hoje.
As pessoas ainda não sabem ser gratas. É mais fácil a agressão do que a gratidão.
Nos últimos tempos voltei a estar com a Nancy. Notícias tristes devolvem-nos, às vezes, a possibilidade do reencontro.
Quando uma destas noites, a Nancy me levou a casa e ficámos no carro a conversar, o meu peito voltou a encher-se como quando tinha 15 ou 16 anos.
A amizade é uma coisa mesmo séria. Se demorei tanto tempo a encontrar as pessoas que ouviam as mesmas canções que eu, também a consciência da sua importância pode tardar.
A amizade é uma espécie de pedrinha que trazemos no bolso como se fosse um amuleto e que nos dará sorte quase para sempre.