O verbo e um percurso
Um verbo galvanizante, um homem de riscos mas também de muitas (excessivas?) ponderações, um parlamentarista que foi Presidente da Republica, um estadista de dimensão internacional, um homem de princípios – assim foi Jorge Sampaio.
Apenas posso imaginar o que teria sido o verbo de Jorge Sampaio enquanto dirigente estudantil na crise académica de 1962 ou na barra dos tribunais, nomeadamente defendendo presos políticos anti-fascistas. Mas posso imaginá-los em retrospectiva porque foi seu o mais empolgante discurso político que alguma vez ouvi in loco, no congresso do MES, Movimento de Esquerda Socialista, em Dezembro de 1974.
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Apenas posso imaginar o que teria sido o verbo de Jorge Sampaio enquanto dirigente estudantil na crise académica de 1962 ou na barra dos tribunais, nomeadamente defendendo presos políticos anti-fascistas. Mas posso imaginá-los em retrospectiva porque foi seu o mais empolgante discurso político que alguma vez ouvi in loco, no congresso do MES, Movimento de Esquerda Socialista, em Dezembro de 1974.
O MES tinha as suas raízes nos sectores não-comunistas da CDE, a Comissão Democrática Eleitoral oposicionista, de 1969 e constituiu-se como rede a partir do ano seguinte, a esses sectores se tendo vindo juntar outros, sindicais e estudantis, mas apenas se tornou partido logo depois do 25 de Abril. Jorge Sampaio era o seu militante mais notório.
Com a agudização do processo político quando se chegou ao congresso havia duas correntes, uma, maioritária, mais radical, liderada por Augusto Mateus e Eduardo Ferro Rodrigues (sim, esses mesmo) e outra, minoritária, defensora de um quadro de alianças à esquerda, com Jorge Sampaio e João Cravinho. Os delegados já estavam mandatados pelas bases senão, com tão arrebatador discurso, Sampaio teria mudado o sentido dos votos.
Este fleumático era também um inflamado homem de causas, que haveria mais tarde de confirmar essa vocação enquanto líder parlamentar do PS e sobretudo (secundado pelo então primeiro-ministro António Guterres) quando da crise de Timor-Leste.
Do mais british dos políticos portugueses há que dizer que se revelava muito em situações on the edge, no limite do risco, mormente quando avançou para candidato a secretário-geral do PS ou quando decidiu sozinho, primeiro que iria, quebrando um tabu, propor ao PCP uma aliança para a Câmara Municipal de Lisboa e seria ele a liderar a lista, e depois quando anunciou que era candidato a Presidente da República — e de ambas as vezes ganhou.
Foi um marcante presidente da edilidade lisboeta, decisivo por exemplo na escolha da localização da zona oriental para a Expo 98. Já como Presidente da República, e em termos internos, o seu balanço é mais contrastado, com a nomeação de Pedro Santana Lopes para primeiro-ministro e a decisão de dissolver a Assembleia da República, poucos meses depois, em 2004.
A coligação PSD/CDS sofrera uma estrondosa derrota nas eleições europeias e o PS, sendo secretário-geral Ferro Rodrigues (sim, tinham-se entretanto voltado a encontrar, agora no regaço socialista), com uma lista liderada pelo entretanto falecido Sousa Franco, atingira o seu maior resultado de sempre. Mas numa Europa tão insuficientemente democrática o primeiro-ministro português, Durão Barroso, um dos líderes que sofrera mais clamorosa derrota, foi escolhido para presidente da Comissão Europeia deixando em aberto a questão ou de novas eleições ou de uma outra indicação por parte do PSD.
Sampaio ponderou, ponderou e auscultou, auscultou. Era, ele o disse, a mais difícil das decisões que tinha que tomar enquanto Presidente. Este fleumático capaz de galvanizar em situações de risco era também um homem de decisões que nalguns momentos se confundiam com uma valsa de hesitações. Esteve tentado a dissolver a Assembleia mas, por fim, o parlamentarista nato que era decidiu que competia à coligação maioritária na AR indicar um novo primeiro-ministro, que viria a ser Santana. Na noite do anúncio dessa decisão, Ferro Rodrigues demitiu-se de secretário-geral do PS, convicto de que a decisão era também um gesto de desconfiança para com ele, de que Sampaio não o julgava capaz de vencer umas legislativas antecipadas.
Sampaio deu posse a Santana Lopes para um governo todavia sob vigilância, com algumas balizas a respeitar. Mas (inevitavelmente) ocorreu o que seria de esperar de um governo de Santana Lopes, uma sucessão de confusões até ao ponto em que o Presidente, de quem os governos não dependiam politicamente desde a revisão constitucional de 1982, optou por dissolver a Assembleia. Comunicou-o ao primeiro-ministro primeiro e mesmo com a decisão já tomada Sampaio andou de novo a auscultar durante semanas, antes de finalmente fazer o anúncio formal, de resto com insuficiente fundamentação, mas tendo ele a noção de que era a sua decisão de maior risco, pois que se PSD e CDS voltassem a ser maioritários só lhe cabia demitir-se.
O mais parlamentarista dos Presidentes foi também o único a exercer uma competência constitucional dos chefes de Estado como comandante supremo das Forças Armadas ao impedir que, como pretendia Durão, tropas portuguesas participassem na invasão do Iraque. Jorge Sampaio tinha uma noção global o que explica as tarefas internacionais a que depois foi chamado ou impulsionou.
Um verbo galvanizante, um homem de riscos mas também de muitas (excessivas?) ponderações, um parlamentarista que foi Presidente da Republica, um estadista de dimensão internacional, um homem de princípios – assim foi Jorge Sampaio.