Entre Amarante e Celorico de Basto, um roteiro de elegâncias, contrastes e castas mal-amadas
Paisagens de altos e baixos, elegância clássica que convive com o espírito de taberna, vinhos que descerram o potencial escondido de castas injustiçadas. O contraste é nota dominante nesta viagem.
O assombro, por vezes, está nos detalhes. A imagem mais duradoura para quem chega pela primeira vez a Amarante é o Tâmega. Um postal clássico: águas tranquilas, casario antigo debruçado das margens e o reflexo num rio feito espelho. Nessa primeira impressão, o Tâmega admira-se de cima, da ponte de São Gonçalo, e só se vê a beleza. Depois, vem o detalhe.
A Adega Kilowatt fica na margem esquerda, a 100 metros da ponte. À porta, na esplanada de duas mesas apenas, quatro amigos viram uma garrafa de branco, depois outra, e outra, aproveitando o clarão do final de dia que inunda a rua. Nas costas da sua conversa galhofeira, quase passa despercebida uma colecção de placas afixadas na fachada. A mais elevada fica a um par de metros do chão e quem a lê dificilmente evitará uma reacção de espanto: na última grande cheia, em 2001, as águas do Tâmega chegaram ali. É assombroso: imaginar aquele rio mansinho a fazer-se gigante furioso, galgar as margens (que não são baixas) e agrandar-se até àquela marca.
O contraste é gigante. Fascinante, até. Mantendo os sentidos despertos, nota-se, aqui e ali, que o contraste faz parte da paisagem e da vida de Amarante e do território que a rodeia. Está presente no verde das parcelas de vinha que espreitam por entre a mancha urbana da cidade. Ou nas cores e formas que povoam as telas de Amadeo de Souza-Cardoso, a quem o município dedicou um museu que não é segredo nenhum. E repete-se aos olhos de quem anda em modo de exploração.
Vinhão, fertilidade e elegância francesa
A Adega Kilowatt é uma casa praticamente centenária com um jovem proprietário – Carlos Silva pegou-lhe há um ano e estima que a fundação terá sido “por volta de 1929”. Quem cruza a porta sente-se numa capela: ambiente escuro, sala ao comprido e, no fundo, um altar a São Gonçalo, padroeiro da cidade. Contudo, ali, sagrado é o fumeiro regional, servido em sandes e em tábuas, e o vinho tinto da casta vinhão, bebido da tigela. É importante dar-lhe companhia sólida, porque, embora agradável, o vinhão não é para estômagos demasiado vazios. O sabor é vivo, a rugosidade sente-se na língua e a acidez preenche todos os recantos da boca. Um vinho de contraste, praticamente um ritual de iniciação numa viagem por terras de Baixo Tâmega.
No lado oposto da rua estão as casas de vista directa para o rio, com salas ou esplanadas panorâmicas. Porta sim, porta não, há pastelarias com elegância de pâtisserie francesa, outra particularidade amarantina. Nas vitrinas, há foguetes, lérias e cavacas – que aqui são rectângulos de pão de ló, com massa branda e cremosa no cimo, de se devorar à garfada. Numa das mesas panorâmicas da pastelaria Moinho – Centro Histórico, por exemplo. Mas outro doce se replica nas montras doceiras de Amarante, em franco contraste com a tal elegância afrancesada – embora a receita varie consoante a casa, têm em comum a forma fálica (alusão a rituais de fertilidade e à vocação casamenteira de São Gonçalo), que acabou por se tornar também símbolo local. Não se estranhe, portanto, que a sua silhueta surja aqui e ali em cartazes e afins. Não é vandalismo, é cultura popular.
O verdadeiro símbolo de Amarante, contudo, é de pedra e cal – e, mesmo estando entaipado para restauro, não passa despercebido. A igreja de São Gonçalo é a jóia da coroa do centro histórico, e faz dele uma preciosidade para quem é fã de cidades com aura de monumentalidade, mesmo que à escala de uma cidade de 12 mil habitantes. Essa monumentalidade dá a Amarante um certo ar francês, em particular quando, de um só olhar, se abarca a ponte, a igreja e o Largo de São Gonçalo e, na face oposta, a imponência aristocrática da Casa da Calçada, que alberga um hotel Rélais & Châteaux e um restaurante com estrela Michelin.
Falemos do restaurante, o Largo do Paço, que o The Guardian descreveu como “um dos melhores de Portugal fora de Lisboa” ao apontá-lo no rol de motivos para incluir Amarante na lista dos “21 sítios a visitar em 2021”. Numa sala de ambiente clássico, desfila a cozinha de rasgo do chef Tiago Bonito, que para a presente temporada se mostra em dois menus de degustação onde o mar é presença forte – um de tributo a sabores e técnicas relacionados com a expansão marítima portuguesa, outro que resume a odisseia do chef pelas cozinhas e regiões onde trabalhou.
Neste segundo, chamado Lés a Lés, entram pratos de tradição revisitados, como o bacalhau à Brás reduzido a um pequeno “croquete”, servido em jeito de amuse-bouche, ou a pescada à poveira, adaptada num prato de sabores substanciais, com puré de salsa, gema de ovo a baixa temperatura, tostas de pão, duxelle de cogumelos e molho pil-pil, com a protagonista tenra, suculenta e o aroma de fumo de carvão. No cortejo de momentos, pontuam também peixes menos óbvios, como a enguia fumada. Ou o lírio açoriano, num prato que é explosão de mar: alga nori, pérolas de ostra e de couve-flor, gelado de pepino e iogurte.
O serviço de vinhos segue também em modo de viagem por Portugal – sem esquecer os vinhos da marca própria Calçada Wines, provenientes, em parte, da vinha que se estende nas costas do hotel. Para conhecê-los melhor, nada como marcar uma prova na garrafeira do restaurante. Se a intenção for levá-los na bagagem, é caso de, antes de seguir caminho, fazer uma paragem na Mercearia Costa, a menos de 5 minutos a pé.
Vistas de Google Earth
Entre as suas diversas vocações, Amarante é também ponto de acesso a vários territórios. Da soleira da porta, rapidamente se põe o pé no Baixo Tâmega, nas montanhas do Alvão, na serenidade do Douro. Ou, seguindo no sentido oposto, sobe-se ao longo do Tâmega, rumo às Terras de Basto. A estrada Nacional 210 marca o azimute, por entre altos e baixos, manchas de pinheiro e eucalipto entrecortadas por talhões de vinha, e, como pano de fundo, a muralha de serras de Marão e Alvão, que se levanta a nascente, e, a norte, as serras da Cabreira e da Lameira. O vale do Tâmega está sempre à distância, sem deixar avistar o rio, mas a paisagem é majestosa. Sobretudo, quando o monte da Senhora da Graça se mete no enquadramento e a sua perfeição geométrica contrasta com tudo o resto.
Quem quiser deitar olho ao Tâmega pode tomar a direcção de Mondim de Basto, e parar no caminho de terra batida à cabeceira da ponte nova. É bonito, sim, mas não justifica por si só o desvio – o objectivo é mesmo subir àquela intrigante montanha. O monte da Senhora da Graça é célebre entre adeptos de ciclismo como culminar de uma das etapas mais duras da Volta a Portugal em Bicicleta.
O caminho começa em Mondim de Basto, na cota dos 200 metros, e a partir dali é sempre a subir. Em 11 quilómetros, vence-se 700 metros de desnível para atingir o santuário da Senhora da Graça, a 947 metros de altitude. As encostas são de tal forma íngremes que, mais do que vistas de miradouro, do topo se tem algo mais parecido com uma panorâmica Google Earth.
O caminho para lá chegar – e para de lá regressar – é metade da graça, uma estrada de curvas apertadas e vistas maravilhosas que, mesmo curta, é uma delícia para qualquer amante da condução. Chegando a Celorico de Basto, outra estrada convida à condução, a N101-4, que leva ao castelo de Arnoia, por entre túneis de floresta e vistas de vale. Ida e volta, descontando a subida ao castelo, é caminho para se fazer em 30 minutos.
Novamente em Celorico, se o calor apertar, a praia fluvial do rio da Vila oferece sombras, bar com esplanada e petiscos, e um parque urbano que segue o curso do rio até ao centro da vila. Já que o assunto é mergulhos de rio, coloque-se outro alfinete no mapa, seis quilómetros a norte, de novo na N210.
A praia fluvial de Fermil fica num curva do rio Veade, sob um toldo de carvalhos, freixos e azinheiras, e tem espaço de sobra para estender a toalha nas margens de areão. Junto à represa, forma-se uma pequena cascata e um ribeiro raso onde as crianças adoram chapinhar. Para enganar o estômago até à hora da refeição, o bar Fermil tem tostas e bebidas frescas.
Se o apetite pedir algo mais substancial, o reconforto está ali perto. Em cinco minutos se alcança o Sabores da Quinta, uma casa de bem comer rodeada de vinha e com janelas a toda a volta. À mesa da família Lemos servem-se as receitas que António, Francisco e Luísa comiam em casa dos avós. Os três irmãos pegaram no trabalho iniciado pelo pai, que transformou uma antiga tasca para venda do vinho da quinta num restaurante-embaixada da cozinha regional. Os fãs do chef-viajante Anthony Bourdain poderão reconhecer o sítio – José Meireles, antigo patrão de Bourdain e primo dos Lemos, trouxe-o aqui para a matança do porco.
Ao leme da cozinha está Pedro Silva, marido de Luísa, que aprendeu observando o sogro. A ementa faz a devida vénia aos pratos de temporada, mas há certas garantias, como a costela mendinha de forno a lenha, emblema da casa. “E há entradas que não conseguimos mudar”, admite António, dando de exemplo as sardinhas de escabeche e os fígados de cebolada. O cliente é soberano.
António Lemos tem o pelouro dos vinhos. Tanto para dar seguimento à marca Dinasta, produzida nos 25 hectares da família, como para gerir a carta do restaurante, dominada pelos produtores da sub-região de Basto. Em não podendo visitar todas as quintas, aqui está uma bela introdução. Em podendo, procure-se o caminho para a Quinta da Raza.
O encanto das mal-amadas
A primeira impressão é marcada pelo ondulado de vinhas que se estende diante da adega, a contrariar a ideia do Minho como região de minifúndio. Somadas todas as parcelas, a Quinta da Raza tem 45 hectares de vinha – nenhuma, porventura, mais bonita do que esta que faz de passadeira verde para quem chega. A coroá-la, o ubíquo monte da Senhora da Graça, magnífico de todas as perspectivas.
Para melhor apreciar o espectáculo, nada como ir directo ao terraço da sala de provas, no topo do novo edifício que junta as valências de enoturismo da quinta. Diogo Teixeira Coelho abre uma garrafa de Quinta da Raza Alvarinho Trajadura e, enquanto enche os copos, recorda a máxima do seu avô, “O vinho tem de beber o sol e comer a pedra”. Ou a importância de compreender o terroir.
Diogo e a sua mulher, Mafalda, estão à frente dos destinos desta quinta que está há muitas gerações na família Teixeira Coelho e reclama a produção de vinho desde 1769. Quando deixou o curso de agronomia para tomar conta do legado, Diogo apostou na reconversão de vinhas, na atenção aos mercados de exportação e em atrair um perfil moderno de cliente. Porém, não deixou de parte coisas de tradição como o vinhão pisado em lagar de granito, ou o gás em algumas referências do portefólio. Nem fugiu às castas emblemáticas da sub-região, nomeadamente a azal, “a uva que tem mais gás por natureza”, e que o enólogo lhe recomendava não identificar no rótulo. Ou a tinta padeiro, desprezada pela tonalidade leve, que se dizia não “beneficiar” o vinho, “mas dá um rosado fantástico”. Dá, de facto: aromático, ligeiro, porém de paladar “cheio”.
A expressão máxima dessa postura lúcida de atenção ao mercado sem perder a reverência à tradição será, talvez, a linha de pét-nat, vinhos que terminam a fermentação em garrafa, criando bolhas naturais, sem adição de gás carbónico. Uma tendência que acaba por ser uma aproximação às raízes dos vinhos da região.
O contraste no vinhão
O segmento pét-nat é, aliás, moda que tem vindo a colher adeptos por toda a região. Incluindo grandes players como a Quinta da Lixa, que tem no Morgado da Vila, de alvarinho e loureiro, uma boa adição ao seu catálogo de irreverências – que inclui, entre outros, um reserva de vinhão, mas lá chegaremos.
A mesa de provas está posta à sombra de um castanheiro, na Quinta de Sanguinhedo, propriedade que em 2015 viu nascer o hotel vínico Monverde – e em 2020 ganhou uma ala de suites de 140 metros quadrados com piscina privativa, lareira e enoteca. Rodeadas, como os restantes quartos, de sossego, de vinha e de recantos para ler, contemplar, estar em silêncio, abrir uma garrafa de vinho.
A tal prova à sombra do castanheiro é guiada por Pedro Lopes, responsável de enoturismo da Quinta da Lixa. “Não há um sítio fixo para provas”, explica, sublinhando que as provas tipo excursão não fazem parte da oferta. Também o elenco de vinhos varia, em função da nacionalidade do cliente, mas também do princípio de “tentar pôr aquilo que o cliente ainda não provou, para maximizar a experiência”. As provas são acompanhadas por uma selecção de canapés, ajustados aos vinhos – o pét-nat sugere queijo e doce de tomate, o que, com a fruta do vinho, cria uma agradável envolvência de rebuçado. E abre o apetite para conhecer melhor o trabalho do chef Carlos Silva.
A carta do restaurante do hotel percorre a cozinha tradicional, sobretudo a da região, trabalhada com técnica de alta cozinha. Com reserva de véspera, o chef prepara um menu vínico, de quatro ou cinco momentos, com harmonização de vinho a um preço que não arruinará o orçamento das férias: 40/50 euros, mais 12/18 euros para suplemento de vinhos. O cortejo poderá incluir a sardinha marinada e braseada com broa, coulis de pimento e manjericão, evocação de santos populares que tem casamento feliz com o Quinta da Lixa Loureiro. Ou então o taco de vitela com risotto de trompetas negras, que traz uma surpresa no copo.
“Já provaram o vinhão?”, pergunta, em jeito de desafio, o sommelier Bruno Oliveira, com tirada pronta: “Não cortaram a boca?” Verdade, o vinhão não será para todos. Ou será que é? No copo, Bruno verte o Reserva Tinto 2015, feito, precisamente, de vinhão. E dá-se a revelação. É intenso, sim, com acidez, também, mas com menos ataque, mais suavidade, as “arestas” limadas. Mais consensual, sem dúvida. A casta pode ser a mesma, mas, para quem conhece o genuíno, a diferença é tremenda. Uma vez mais, o contraste, sempre o contraste.