O terraço
Seremos sempre diferentes só a memória nos situa. Tudo mora na minha cabeça. Habitações difíceis e exíguas para aquilo que queremos da vida. Aceito, no entanto, que este é o espaço que temos. Vivo-o.
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Quando chego ao n.º 120 sento-me na cadeira de sempre com as teias da aranha a confirmar que já passaram muitos Verões. Levo-a para perto do poço, agora deixando ver a vegetação abandonada que a idade se incumbiu de negligenciar.
O sol aquece muito. Então pego na cadeira e trago-a debaixo do braço como se fosse um jornal dobrado.
A cadeira vem até ao velho terraço e entrego meio corpo à sombra deixando o sol queimar-me a cara. Fecho os olhos e recorro ao arquivo da memória, nem sempre nítido como neste momento: lembro-me de ter 20 anos e estar aqui, neste mesmo lugar. De um lado e do outro, as rosas ameaçam os visitantes com espinhos que se prendem à roupa dos distraídos. Nunca precisámos de um cão embora o tivéssemos: bastavam as rosas a condenar a curiosidade alheia.
Os sinos têm tocado toda a tarde, e distingo, ao longe, um zurzido de máquinas que parece vir de uma oficina. Já não deve ser do meu tempo.
Um cão uiva sem parar. E o galo canta. Tudo se mistura nunca havendo silêncio. Fecho os olhos, uma e outra vez, mas sou sempre sobressaltada pelo ruído que não se compadece com o nosso estado de espírito. O cão vai ganindo como se marcasse o tempo.
Lembro-me bem do primeiro animal que trouxemos para casa: tinha ido ao futebol com o meu pai, pela mão dele, sem perceber por que havia eu de gostar de ir ver homens em delírio a ver um campo de terra batida com balizas mais frágeis do que os palitos na boca que eles ostentavam com orgulho. Eu ia com o meu pai e gostava. Mesmo quando ele se levantava colérico insultando o árbitro e os jogadores. Era tudo tão débil. Eu ficava entre a vergonha e o divertimento. Na verdade do que eu gostava mesmo era do passeio. De ir pela mão dele.
Um dia, no regresso a casa, vimos um gato abandonado, sujo, pequeno. E eu devo ter pedinchado ao meu pai para o levarmos. A casa era nova e precisava de gente e de animais. E lá veio a Nica. A Nica percebeu logo a minha mãe, era uma gata e o nome surgiu muito facilmente vindo de um programa de televisão.
Nica não vinha sozinha: trazia todo o tipo de parasitas que um animal pode ter. E nós tratámos dela. A gata cresceu e nós também. Até ao dia em que nos pareceu mais redonda. “A gata está prenhe”, disse alguém. E eu fiquei inquieta, talvez irrequieta seja a palavra, a pensar que Nica não seria mais o único animal a ocupar esta casa.
Nica não preparava o ninho e eu era avisada pela minha mãe que os filhos podiam nascer ‘por ali’. Acordava todos os dias com o mesmo entusiasmo para espreitar a casa-forte de Nica mas nunca mais havia indícios dessa construção.
Um dia, neste mesmo terraço onde o sol me ilumina a cara e a sombra me cobre o corpo, Nica foi ter comigo (eu devia ter 6 anos) aproximou-se, rente, e demasiado rápido para eu poder processar tudo aquilo, começou a ter os filhos junto aos meus pés. Eu fiquei aflita com a impreparação dela (já me bastava a minha) mas fiquei muito pior quando algo de terrível aconteceu.
Escrevo e viro a cabeça para o lugar onde a minha memória preservou esse instante: a gata Nica começou a comer os filhos recém-nascidos sem dó, sem hesitações. Aos meus pés. Um a um. Eram três. Ainda hoje esse barulho está presente na minha cabeça. Demorei muito a processar o que se tinha passado. Ela não. Felizmente.
Alguém deve ter dito depois que quando os bichos detectam que a primeira ninhada é fraca, se livram deles. Mas eu nunca pensei que pudesse ser assim.
Não tardou muito para que Nica ficasse novamente prenhe. E desta vez houve ninho na palha e gatos a passear pelo terraço.
Foi aqui mesmo neste terraço. O sol parece o mesmo mas não é.
Eu não sou a mesma. E no entanto os lugares puxam-nos para um sítio que nos faz acreditar que pouco mudou. Os lugares são depois habitados pelas memórias. São eles que nos lembram que afinal a mudança aconteceu. Que já pouco sobrevive do que fomos. Do que tivemos. Somos outros sim. Seremos sempre diferentes só a memória nos situa.
Tudo mora na minha cabeça.
Habitações difíceis e exíguas para aquilo que queremos da vida.
Aceito, no entanto, que este é o espaço que temos.
Vivo-o.