As eleições autárquicas e o sistema de poder municipal
Necessitamos de mais e melhor inteligência coletiva territorial.
Aproximam-se as eleições autárquicas. É a hora da rotação do poder municipal. Como sabemos, o sistema de poder municipal está organizado em redor de três subsistemas de distribuição: duas circunscrições eleitorais (municipal e distrital); três níveis de administração pública, central, regional e local (AC, AR e AL); e três níveis de organização político-partidária (concelhio, distrital e nacional). Os partidos políticos, os operadores privilegiados do sistema, tentam otimizar a sua implantação, o seu sistema de poder, a sua distribuição de lugares, neste sistema a três dimensões. Em 2021, 47 anos depois do 25 de Abril, em muitos municípios portugueses, o poder local confunde-se com o poder autárquico, ao mesmo tempo que a sociedade política local parece ter sido capturada pela omnipresença asfixiante da câmara municipal. Façamos uma breve reflexão a propósito.
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Aproximam-se as eleições autárquicas. É a hora da rotação do poder municipal. Como sabemos, o sistema de poder municipal está organizado em redor de três subsistemas de distribuição: duas circunscrições eleitorais (municipal e distrital); três níveis de administração pública, central, regional e local (AC, AR e AL); e três níveis de organização político-partidária (concelhio, distrital e nacional). Os partidos políticos, os operadores privilegiados do sistema, tentam otimizar a sua implantação, o seu sistema de poder, a sua distribuição de lugares, neste sistema a três dimensões. Em 2021, 47 anos depois do 25 de Abril, em muitos municípios portugueses, o poder local confunde-se com o poder autárquico, ao mesmo tempo que a sociedade política local parece ter sido capturada pela omnipresença asfixiante da câmara municipal. Façamos uma breve reflexão a propósito.
I. As tendências pesadas que afetam o poder local
Enquanto a emancipação da sociedade política local toma forma, as grandes tendências pesadas que marcam a evolução do poder local continuam a produzir todo o tipo de custos contextuais:
- cada vez mais próximos do inverno demográfico: pirâmides demográficas invertidas, concelhos demograficamente moribundos, concelhos-lar sem futuro;
- danos crescentes provocados pelos riscos globais e sistémicos: riscos totalmente aleatórios e imprevisíveis, danos colaterais de grande monta, governação intermunicipal pouco efetiva;
- ciclos económicos curtos e choques assimétricos: compressão espaço-tempo, choques assimétricos com maior frequência, extrema volatilidade dos investimentos, concelhos no banco de urgência e cuidados intensivos;
- nenhum problema local se resolverá apenas no plano local: problemas de articulação multiníveis de governo e administração, problemas de multiescalaridade no uso de recursos, problemas de efetividade das políticas públicas do território;
- a saturação do espaço público municipal — zonas cinzentas de indiferença dos cidadãos, cortinas de opacidade e suspeição, voto cego em listas partidárias fechadas — gera um abstencionismo crescente, perda progressiva de qualidade do espaço público;
- o esgotamento do modelo financeiro autárquico: um modelo esgotado baseado em transferências e endividamento; as transferências muito dependentes do orçamento geral do Estado e fortemente correlacionadas com os ciclos económicos conjunturais; os municípios têm dificuldade em gerar saldos primários positivos e as políticas públicas locais estão vocacionadas e viciadas em bens não transacionáveis.
II. O sistema de poder do poder autárquico
Neste contexto, o sistema de poder do poder autárquico pode ser caracterizado da seguinte forma:
- a globalização/desterritorialização e os riscos globais/choques assimétricos geram extrema vulnerabilidade no município e perda de poder efetivo aos órgãos autárquicos;
- uma cultura administrativa de pendor excessivamente regulamentar e burocrática põe em causa as funções mais convencionais da administração autárquica, enquanto as ligações perigosas com redes clientelares e sindicatos de votos retiram crédito e reputação à gestão municipal;
- o sistema cria muitos simulacros de participação para funcionar e criar habituação e conformidade, enquanto uma comunicação institucional de pendor muitas vezes paternalista e moralista acaba por ter resultados contraproducentes junto dos eleitores;
- o sistema desconcentrado funciona no modo vertical e hierárquico, de cima para baixo, e padece de um excesso de institucionalização, ora centralista ora localista, que lhe agrava o vício burocrático;
- as formas de cooperação territorial descentralizada servem apenas para justificar os investimentos municipais e o seu acesso aos programas de financiamento e não, verdadeiramente, os investimentos intermunicipais e sub-regionais que são necessários;
- o sistema não tem governação e multiescalaridade suficientes devido à baixa autonomia dos níveis intermédios e, por isso, funciona numa lógica utilitarista declarada de acordo com a única legitimidade original que é a autárquica.
Chegados aqui, a grande incógnita dos próximos anos é saber se assistiremos ao enquistamento deste poder autárquico ou, antes, à sua libertação por via de uma maior diversidade social e pela criação de novos formatos socio-organizacionais nos quais o poder autárquico é um par interpares em estreita articulação com os outros poderes, empresarial, universitário, cultural, mediático, associativo, etc. Está em causa a construção de comunidades em rede, de uma economia local colaborativa e de novas plataformas tecnológicas que sustentem essas comunidades socialmente construídas.
III. A emergência da sociedade política local
Do lado da sociedade política local a perspetiva do futuro abre muitas janelas de oportunidade, por exemplo:
- cultivar os valores da “Sociedade Colaborativa” (CO): o conhecimento, a comunidade, a colaboração, a comunicação, a comunhão, a confiança, a convivialidade, a congratulação;
- reequilibrar os territórios de geometria fixa com mais territórios-rede de geometria variável e dar prioridade à produção de capital social, isto é, a territórios cognitivos capazes de aprender e empreender;
- dar prioridade a um associativismo de 2.ª geração, do lado da procura e organizado em redor de plataformas interativas e apoiar novas comunidades de trabalho para lá do emprego que existe ou deixou de existir;
- promover a aproximação e a fusão progressivas dos sectores público, social e comunitário, criando o quarto sector, o sector dos bens comuns colaborativos e ensaiar a criação de moedas sociais complementares no quarto sector em articulação com a moeda oficial;
- formar o movimento social da “Sociedade CO”, fomentar o poder lateral dos pares e das suas redes colaborativas, dar prioridade à formação de comunidades online em lógicas de open source e estar atento para evitar uma eventual utilização abusiva e indevida das práticas digitais colaborativas.
IV. O paradigma da gestão municipal do século XXI
Tudo o que já dissemos a este propósito contempla um município mais aberto, mais cosmopolita, mais conectado e mais colaborativo. O decálogo que se segue ilustra bem o novo paradigma da gestão municipal:
- um município mais comunitário e federalista, com uniões de freguesias, associações de municípios e comunidades intermunicipais, praticando a governação multiníveis em múltiplas formas e modalidades de rescaling;
- um município mais aberto em matéria de economia municipal, acertando com grupos de cidadãos práticas inovadoras de crowdsourcing, crowdfunding e crowdlearning;
- um município mais móvel e itinerante na prestação de serviços pessoais, inovando em matéria de serviços de mobilidade, transporte e bancos de tempo, tendo em vista a criação de uma genuína economia solidária no concelho;
- um município muito mais verde em matéria de economia dos 4R (reduzir, reciclar, reparar e reutilizar) e muito mais eficiente em matéria de recursos ociosos;
- um município muito mais virado para a economia criativa e cultural em tudo o que diz respeito à gestão de recursos intangíveis e simbólicos;
- um município muito mais polivalente, horizontal e interativo no que diz respeito à sua orgânica interna, que se traduzirá numa nova relação funcional “front-office versus back-office”, acompanhada de uma alteração substancial do seu capital social;
- um município com menos hierarquia e mais heterarquia, um verdadeiro par interpares, por exemplo, em matéria de parcerias público-privadas mais inteligentes;
- um município menos fiscalista e mais contratualista no plano da engenharia financeira, por exemplo, com um funding muito mais diversificado e imaginativo junto dos grupos de interesse locais e regionais;
- um município mais transparente no que diz respeito à accountability municipal, isto é, com uma monitorização das políticas públicas muito mais interativa;
- um município com via verde jovem no domínio da economia digital, isto é, mais aberto e imaginativo para a sua população jovem, por via de diversas plataformas inteligentes desde simples espaços de coworking até estruturas de FabLab para a produção de protótipos industriais.
Notas Finais
Para o poder local, o futuro e o sistema de poder acontecerão em três grandes planos. Em primeiro lugar, no plano tecnológico e técnico-administrativo, com mudanças incrementais que dependem antes de mais de recursos financeiros disponíveis e mobilizáveis. E nesta matéria não faltarão os recursos financeiros com o PRR 2026 e o PT 2030. Estas alterações funcionais modificarão substancialmente a estrutura técnico-administrativa e o capital social das autarquias locais.
Em segundo lugar, o que poderíamos designar como o ecossistema comunitário do poder local e que se reporta ao universo associativo e às redes colaborativas que ligam esse universo associativo. Trata-se aqui de criar o complexo digital e colaborativo da administração local interagindo mais com os cidadãos e as suas organizações, muito provavelmente em plataformas de outsourcing muito diversas e imaginativas.
Por último, o que poderíamos designar de ecossistema institucional, uma ampla zona de contato onde se realizam as principais transações entre níveis de governo e administração, o que a literatura consagrou com a designação de governação multiníveis. Aqui falamos de federalismo autárquico, de comunidades intermunicipais, de diversas modalidades de regionalização, de euro-regiões e cooperação transfronteiriça, de alterações na política europeia de coesão territorial e, mesmo, de reformas do Estado.
Em síntese, e em todos os casos, necessitamos de mais e melhor inteligência coletiva territorial. Com efeito, nesta matéria, é necessário um grande esforço de ordenamento, programação, planeamento e realização territoriais tendo em vista ganhar uma massa crítica de intervenções, com mais densidade muscular, sistema nervoso e coluna vertebral, isto é, com mais e melhor inteligência coletiva territorial. E, nesse sentido, o país bipolar que somos hoje, está assente nos níveis NUTS I (central) e NUTS IV (local), quando deveria estar assente nos pilares intermédios, os níveis NUTS II (regiões funcionais coincidentes com as CCDR) e NUTS III (agrupamentos e/ou comunidades intermunicipais) e dar, enfim, uma oportunidade às suas Comunidades Intermunicipais (CIM), as futuras regiões-cidade de um país mais policêntrico e democrático.