É preciso chegar ao último dos cinco programas da Competição Nacional de curtas-metragens do IndieLisboa para, depois de um arranque morno, sentir que o formato curto português está a mexer. Há filmes bons nos restantes programas, mas é nesta segunda metade da competição que se concentram os títulos mais interessantes. E o programa 5 (cinema São Jorge, terça 31 às 19h e sexta 3 às 21h45) é aquele onde os filmes escalados se equilibram melhor uns com os outros, conjugando olhares interessantes sobre os tempos em que vivemos. Com destaque para a melhor das 19 curtas a concurso no Indie 2021: Silvestre, de Rúben Gonçalves, retrato de um rapaz de Lisboa prisioneiro das circunstâncias, que escapa inteligentemente a todas as gavetas onde poderia encaixar.
Nem realismo social puro e duro (como na “tradição britânica” de The Shift, de Laura Carreira, que estreou em Veneza e passa no programa 4) nem curta queer nem instantâneo da precariedade millennial, Silvestre é no entanto tudo isso ao mesmo tempo: a história de um rapaz secreto a procurar sobreviver como pode, simultaneamente urgente e analítica, fazendo o espectador partilhar a constante fuga para a frente de um “herói” em permanente resguardo.
A sua elegância visual (toda em planos longos que respiram inteligência) partilha a sessão com três outros filmes que partilham esse olhar entre proximidade e distância. Primeiro, Garças de Gabriela Nemésio Nobre, filme literalmente de família (com a própria realizadora e os seus pais frente a câmara) em constante tangente ao exercício ensimesmado, mas capturando com justeza as dinâmicas familiares. Depois, Barbas de Baleia de Mariana Bártolo, suave memória de mitos e lendas regionais transfigurada com delicadeza simples.
Finalmente, We Won’t Forget, da dupla luso-americana Lucas Elliot Eberl / Edgar Morais, é uma quase-performance que levanta questões sobre a permanente “sociedade do espectáculo” em que vivemos, mantendo a dúvida sobre o que é encenado e o que é real. Nenhum deles alcança a excelência de Silvestre (e o facto de We Won’t Forget ser mais americano do que português fá-lo destoar), mas enquadram com justeza os seus 35 minutos.
Não se encontra nenhum outro filme ao nível de Silvestre nos restantes programas por exibir. O que chega mais perto é Sopro, discreto documentário de média-metragem de Pocas Pascoal (Alda e Maria – Por Aqui Tudo Bem) sobre um casal holandês que perdeu a quinta no incêndio de Pedrógão Grande. É um filme simultaneamente de desencanto e esperança, em que Marion e Peter questionam com uma desolação que nada tem de “baixar os braços” as instituições portuguesas e a própria natureza da nossa sociedade, mas que demonstra uma atenção e uma elegância – uma maturidade - que nos conquistou.
Sopro é a âncora do quarto programa competitivo (São Jorge, segunda 30 às 19h e sexta 3 às 18h45), que poderia ser designado como de “temática social” com a precariedade como norte - partilhada com o já referido The Shift (realismo social britânico num filme que de português só tem a sua autora) e com Catatonia de Tiago Rosa-Rosso (cujas boas ideias de sátira paredes-meias com o nonsense se perdem num rally-paper algo inconsequente). No entanto, a presença no programa de Dobra, exercício de son et lumière paredes meias com o “filme de artista” de Rita Figueiredo e Gonçalo Robalo, salta fora dessa lógica.
A mesma questão se levanta na terceira sessão (São Jorge, domingo 29 às 21h45 e quinta 2 às 21h45): os seus filmes-âncora inscrevem-se abertamente nas temáticas contemporâneas de género e sexualidade. De um lado, está o penoso Tracing Utopia, de Catarina de Sousa e Nick Tyson, retrato mediado pela tecnologia de um grupo de adolescentes nova-iorquinos numa comunidade virtual não-binária, que se esgota na vontade de lhes dar voz sem encontrar o melhor modo de o pôr em imagens. Do outro, um dos melhores títulos do concurso, Cabra Cega de Tomás Paula Marques, sobre as micro-agressões quotidianas nascidas do medo do “outro”, do “diferente”; filme literalmente “trans-género” no modo como navega entre o retrato social e a aproximação ao género com apreciável segurança.
A sessão, no entanto, completa-se com dois títulos que não encaixam nessa lógica queer: Um Quarto na Cidade da dupla veterana João Pedro Rodrigues/João Rui Guerra da Mata, sentida e lúdica homenagem a Jacques Demy em resposta a uma encomenda do festival pernambucano Janela Internacional de Cinema; e Eco de um Soco no Osso, da brasileira Gabriela Giffoni, sobre a experiência da emigração brasileira em Portugal, cujos três segmentos, “baralhados” narrativamente, não se articulam por inteiro apesar das boas pistas que deixam.
Com todas as suas fragilidades, a competição nacional do Indie confirma, ainda assim, a sensação com que saíramos do Curtas Vila do Conde: há neste momento mais ideias e mais desejo de cinema na curta-metragem do que na longa, e há nomes que valerá a pena seguir com atenção. Assim a produção o permita.
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É preciso chegar ao último dos cinco programas da Competição Nacional de curtas-metragens do IndieLisboa para, depois de um arranque morno, sentir que o formato curto português está a mexer. Há filmes bons nos restantes programas, mas é nesta segunda metade da competição que se concentram os títulos mais interessantes. E o programa 5 (cinema São Jorge, terça 31 às 19h e sexta 3 às 21h45) é aquele onde os filmes escalados se equilibram melhor uns com os outros, conjugando olhares interessantes sobre os tempos em que vivemos. Com destaque para a melhor das 19 curtas a concurso no Indie 2021: Silvestre, de Rúben Gonçalves, retrato de um rapaz de Lisboa prisioneiro das circunstâncias, que escapa inteligentemente a todas as gavetas onde poderia encaixar.
Nem realismo social puro e duro (como na “tradição britânica” de The Shift, de Laura Carreira, que estreou em Veneza e passa no programa 4) nem curta queer nem instantâneo da precariedade millennial, Silvestre é no entanto tudo isso ao mesmo tempo: a história de um rapaz secreto a procurar sobreviver como pode, simultaneamente urgente e analítica, fazendo o espectador partilhar a constante fuga para a frente de um “herói” em permanente resguardo.
A sua elegância visual (toda em planos longos que respiram inteligência) partilha a sessão com três outros filmes que partilham esse olhar entre proximidade e distância. Primeiro, Garças de Gabriela Nemésio Nobre, filme literalmente de família (com a própria realizadora e os seus pais frente a câmara) em constante tangente ao exercício ensimesmado, mas capturando com justeza as dinâmicas familiares. Depois, Barbas de Baleia de Mariana Bártolo, suave memória de mitos e lendas regionais transfigurada com delicadeza simples.
Finalmente, We Won’t Forget, da dupla luso-americana Lucas Elliot Eberl / Edgar Morais, é uma quase-performance que levanta questões sobre a permanente “sociedade do espectáculo” em que vivemos, mantendo a dúvida sobre o que é encenado e o que é real. Nenhum deles alcança a excelência de Silvestre (e o facto de We Won’t Forget ser mais americano do que português fá-lo destoar), mas enquadram com justeza os seus 35 minutos.
Não se encontra nenhum outro filme ao nível de Silvestre nos restantes programas por exibir. O que chega mais perto é Sopro, discreto documentário de média-metragem de Pocas Pascoal (Alda e Maria – Por Aqui Tudo Bem) sobre um casal holandês que perdeu a quinta no incêndio de Pedrógão Grande. É um filme simultaneamente de desencanto e esperança, em que Marion e Peter questionam com uma desolação que nada tem de “baixar os braços” as instituições portuguesas e a própria natureza da nossa sociedade, mas que demonstra uma atenção e uma elegância – uma maturidade - que nos conquistou.
Sopro é a âncora do quarto programa competitivo (São Jorge, segunda 30 às 19h e sexta 3 às 18h45), que poderia ser designado como de “temática social” com a precariedade como norte - partilhada com o já referido The Shift (realismo social britânico num filme que de português só tem a sua autora) e com Catatonia de Tiago Rosa-Rosso (cujas boas ideias de sátira paredes-meias com o nonsense se perdem num rally-paper algo inconsequente). No entanto, a presença no programa de Dobra, exercício de son et lumière paredes meias com o “filme de artista” de Rita Figueiredo e Gonçalo Robalo, salta fora dessa lógica.
A mesma questão se levanta na terceira sessão (São Jorge, domingo 29 às 21h45 e quinta 2 às 21h45): os seus filmes-âncora inscrevem-se abertamente nas temáticas contemporâneas de género e sexualidade. De um lado, está o penoso Tracing Utopia, de Catarina de Sousa e Nick Tyson, retrato mediado pela tecnologia de um grupo de adolescentes nova-iorquinos numa comunidade virtual não-binária, que se esgota na vontade de lhes dar voz sem encontrar o melhor modo de o pôr em imagens. Do outro, um dos melhores títulos do concurso, Cabra Cega de Tomás Paula Marques, sobre as micro-agressões quotidianas nascidas do medo do “outro”, do “diferente”; filme literalmente “trans-género” no modo como navega entre o retrato social e a aproximação ao género com apreciável segurança.
A sessão, no entanto, completa-se com dois títulos que não encaixam nessa lógica queer: Um Quarto na Cidade da dupla veterana João Pedro Rodrigues/João Rui Guerra da Mata, sentida e lúdica homenagem a Jacques Demy em resposta a uma encomenda do festival pernambucano Janela Internacional de Cinema; e Eco de um Soco no Osso, da brasileira Gabriela Giffoni, sobre a experiência da emigração brasileira em Portugal, cujos três segmentos, “baralhados” narrativamente, não se articulam por inteiro apesar das boas pistas que deixam.
Com todas as suas fragilidades, a competição nacional do Indie confirma, ainda assim, a sensação com que saíramos do Curtas Vila do Conde: há neste momento mais ideias e mais desejo de cinema na curta-metragem do que na longa, e há nomes que valerá a pena seguir com atenção. Assim a produção o permita.