O cesto cheio
O que vi foi suficiente para perceber que dentro da noite há muitas noites, muitos nomes, muitos corpos que valem apenas uma e outra e mais outra moeda.
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“Tatiana, cabine 1. Samanta, cabine 2. Vanessa, cabine 3.” Talvez a ordem não fosse em rigor, esta, mas lembro-me de os nomes serem grandes e nisso haver um fascínio qualquer. Se me tivesse chamado Cassandra ou Camila, a minha vida podia ter sido diferente.
Estávamos a subir a calçada onde o eléctrico passava. Não sei se alguma vez alguém se lembrou de lhe chamar Desejo, mas o desejo morava mesmo ali ao lado. Mal de mim se lhe chamasse pecado.
Nessa subida, já noite, uma canção ecoava fora das portas que se iluminavam com neons. Lembro-me bem da sensação da canção tocar e eu quase ser puxada por ela: “Eyes without a face”, Billy Idol. Se a noite assobiasse, assobiaria esta canção. Um íman para os que querem ver mais. Olhos sem rosto que se procuram para encontrar na noite.
Entrámos a medo no sítio em que o prazer tinha números. Foi muito antes das raspadinhas, selos aditivos de consumo imediato. Cabines, uma mesa de Dj, homens em câmara lenta apesar de procurarem o prazer instantâneo. Quando não queremos dar nas vistas, tentamos pairar em vez de andar. Era isso o que os homens faziam naquela e noutras noites.
Nós éramos miúdos que subíamos até ao Bairro Alto quando lá andávamos em brindes que ainda não eram à saúde. A saúde passa a ser um bem primeiro quando a consciência nos assalta. Nessa noite ainda levávamos a inconsciência connosco. Saímos de um concerto, ríamos alto despreocupados e num instante, sem querer, apanhámos um caminho diferente e a noite conheceu outro destino (mas ainda chegámos ao Bairro Alto).
Um homem careca, cujo cabelo teimava em crescer atrás, gingava os botões da mesa de mistura como se dançasse com eles. A voz colocada escondia um passado de rádio ou seria ainda o presente com aquele part-time na noite sem rostos? Era dali que vinha a música que nos tinha puxado para dentro e a voz que anunciava as raparigas de nomes compridos. Naquela sala as raparigas ainda não tinham rosto. Só nomes. Chamavam-lhes nomes que escondiam um corpo e algo mais.
Penso que já não nos ríamos. Havia um nervosismo latente para a jogada que se seguia: também queríamos ir ver mais. As cabines e o que lá se escondia. E fomos.
Quando entrei sozinha na cabine minúscula, um balde cheio de lenços de papel usados rapidamente me situou no espaço. E o tempo era pouco, medido por uma ranhura onde entrava uma moeda facilmente engolida pela avidez da máquina e de todos os que lá estavam. A moeda engolida fez a parede escura transformar-se em espelho onde uma mulher muito branca e um homem negro trocavam de posições, despidos. Eram elas que tinham nomes. Os homens não. Era a Tatiana ou a Vanessa que chamavam os curiosos. Eles, não.
A adrenalina do momento era um jogo de quem vê quem. E quão próximos estamos nós do que está a acontecer? Enquanto eles trocavam carícias e algo mais, eu pensava no que me tinha levado ali naquela noite. Evitei voltar a olhar para o cesto de papéis e não pus o olfacto ao serviço dos meus sentidos. Num segundo o espelho voltou a ser uma parede escura como se a máquina tivesse vontade própria ou mão no desejo alheio. E teria mesmo noutros casos.
O que vi foi suficiente para perceber que dentro da noite há muitas noites, muitos nomes, muitos corpos que valem apenas uma e outra e mais outra moeda.
Saímos cada um da sua cabine sem muito a dizer do que tínhamos visto. Era um exercício profundamente solitário que tinha provocado a cada um, mais do que tudo o que a memória coleccionara, o vazio.
Acho que já não rimos muito na subida da calçada, sem o eléctrico chamado desejo. Na saída não retive a canção, já nem a voz colocada do Dj sem nome.
Eram elas que tinham nome. Nomes compridos como a noite que assobia uma canção e pede moedas em troca do prazer.
“Eyes without a face…”