Do IPCC à nossa capacidade de nos maravilharmos

Um dia, conversava sobre como estudar as alterações climáticas e não ter uma depressão. A verdade é que é um tópico cheio de urgência e extremamente interessante. É uma actividade que obriga a olhar a Natureza como um todo sem perder o detalhe e rigor por cada um dos sistemas.

Foto
Greg Rakozy/Unsplash

No início do original e irreverente livro Gaia, James Lovelock descreve o episódio que deu origem à teoria da Terra enquanto organismo vivo. Conta a história de quando partilhava um gabinete na NASA com o famigerado astrónomo Carl Sagan e ambos discutiam se seria possível, do ponto de visto astronómico, descobrir se um planeta longínquo tem, ou não, vida. Os nossos vizinhos, Marte e Vénus, têm atmosferas dominadas pelo dióxido de carbono, algo fundamentalmente diferente da Terra.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

No início do original e irreverente livro Gaia, James Lovelock descreve o episódio que deu origem à teoria da Terra enquanto organismo vivo. Conta a história de quando partilhava um gabinete na NASA com o famigerado astrónomo Carl Sagan e ambos discutiam se seria possível, do ponto de visto astronómico, descobrir se um planeta longínquo tem, ou não, vida. Os nossos vizinhos, Marte e Vénus, têm atmosferas dominadas pelo dióxido de carbono, algo fundamentalmente diferente da Terra.

Nela, o surgimento das primeiras algas fotossintéticas alterou por completo a atmosfera, tornando o oxigénio o segundo gás mais abundante, para além do azoto. Mas a história da atmosfera da Terra tem muitos episódios. A dada altura, as concentrações de oxigénio foram o dobro das actuais e libelinhas com quase um metro de asas habitaram este mesmo lugar há 300 milhões de anos. Também poderíamos falar, a bem dos bons sonhos, de centopeias não menos pequenas. Para ter a certeza de que existe vida na Terra, um extraterrestre tem duas hipóteses: ou vem cá dar uma espreitadela, ou pacientemente aguarda e assiste à instabilidade da nossa atmosfera. É essa a assinatura da vida na Terra do ponto de vista astronómico.

Na perspectiva de Gaia, a Terra é um sistema vivo que se adapta e ajusta continuamente. Os primeiros organismos fotossintéticos também eram tóxicos para a vida anaeróbia assim como nós estamos a ser para a sobrevivência da maioria das espécies, incluindo a nossa. O planeta está a ganhar todas as medalhas de ouro possíveis. Temos a mais alta concentração de CO2 atmosférico dos últimos dois milhões de anos, a velocidade do aumento do nível médio do mar é a mais rápida dos últimos três mil anos, a extensão de gelo no Árctico é a menor em pelo menos mil anos e a perda de glaciares não tem qualquer comparação os últimos dois mil anos, no mínimo.

É claro que estes exemplos são muitas vezes conservadores e é necessária alguma cautela para interpretar os resultados. Por exemplo, o facto de não haver comparação para a perda de glaciares nos últimos dois mil anos não quer dizer que há precisamente dois mil anos e mais um fim-de-semana tenha existido uma perda maior. É provável termos de ir bem mais atrás, ao início do Holoceno, para verificar uma perda semelhante.

Não há nenhuma disrupção teórica entre as versões dos relatórios do IPCC, apenas mais certezas e menos tempo para agir. Entre a avaliação de 2013 e a de 2021 foram saindo vários artigos mais avassaladores. A questão é que, com mais estudos, mais dados e mais coerência científica, temos mais confiança acerca do futuro do clima, do aquecimento global e da resposta dos mecanismos de regulação climática, em particular a resposta dos oceanos e o efeito das nuvens. Segundo esta 6ª avaliação, tão cedo quanto 2040, chegaremos a um aumento de temperatura média global de 1,5 ºC, deixando para trás as melhores intenções do Acordo de Paris.

Disse Karl Popper que “o optimismo é um dever. Somos todos igualmente responsáveis pelo que está por vir”. Coisa curiosa, a psique de um cientista climático. Um dia, à sombra da minha árvore preferida em Lisboa, o “cedro do Bussaco”, no Príncipe Real, conversava-se sobre como estudar as alterações climáticas e não ter uma depressão. A verdade é que é um tópico cheio de urgência e extremamente interessante. É uma daquelas áreas que obriga a dar um passo de gigante e voltar a juntar as pecinhas que o método científico obriga a separar. É uma actividade que obriga a olhar a Natureza como um todo sem perder o detalhe e rigor por cada um dos sistemas.

No fundo, tal como o próprio Jim Lovelock diz, temos as ciências da Terra, mas é necessário criar-se a Fisiologia, ou a Medicina, da Terra. Contudo, este relatório não foi feito para ser optimista nem pessimista, é simplesmente a manifestação do esforço de centenas de cientistas, de dezenas de países diferentes, em prol do consenso sobre modelos climáticos. É nesse sentido que esta sexta avaliação do IPCC é o guia mais preciso sobre que futuro queremos para o nosso Planeta, é como ir a um restaurante e, para além de escolhermos o prato, ficar com a receita.

Ter este conhecimento é de uma responsabilidade incomensurável. Continuo a achar que do ponto de vista humano, este é o trabalho científico que mais nos obriga a reflectir sobre a nossa existência colectiva. É um ponto de viragem na nossa narrativa, um dos marcos mais importantes da história humana. Para o melhor e para o pior, temos os aliados de sempre: a arte e a ciência – porque se uma nos ajuda a tomar decisões, a outra ajuda-nos a viver com elas.

Este relatório obriga-nos a sermos melhores habitantes deste planeta. A maior parte das emissões foram provocadas pelo então chamado “Primeiro Mundo”. Alguns países só agora estão a ter a oportunidade de melhorar o seu bem-estar social, à custa dos mesmos processos. Se todo o combustível e electricidade actualmente em uso fosse redistribuído pela população mundial, a energia consumida per capita seria igual à média dos habitantes da Suíça nos anos 60. Ou seja, se em vez de produzir mais fôssemos capazes de partilhar melhor não precisávamos (não precisamos!) de chegar a este ponto. Naquela altura, a esperança média de vida na Suíça era igual à dos Estados Unidos da América nos dias de hoje e muito superior à média global. A vida podia não ser perfeita, mas vivia-se melhor em muitos aspectos, especialmente com mais tempo (o número de horas de trabalho por semana era inferior ao da maioria dos países de alto PIB hoje) a um custo ambiental incrivelmente menor.

O caminho que estamos a trilhar lembra-me, muitas vezes, as últimas páginas d’O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald: “Conforme a Lua subia no céu, as casas insignificantes passaram a dissolver-se até que, pouco a pouco, os meus pensamentos desaguaram na antiga ilha selvagem que surgira aos olhos dos marinheiros holandeses neste exacto lugar – o seio verde e frondoso de um Novo Mundo. As árvores extintas, aquelas que cederam lugar à casa de Gatsby, outrora estimularam os sonhos derradeiros e mais ambiciosos dos homens; por um momento transitório e mágico, alguém deve ter prendido o fôlego à vista deste continente, compelido a uma contemplação estética que não compreendia e tampouco desejava, face a face, pela última vez na história, com algo proporcional à sua capacidade de se maravilhar.”

Não estamos a falar só de Ciência, estamos a falar de decisões, de valores, da nossa história e sobrevivência. Será que estamos dispostos a consumir menos e a partilhar mais? Será que, confrontados com o fim das condições que encerram a sua sobrevivência, os humanos irão, pela primeira vez, comprometer-se com algo proporcional à sua capacidade de se maravilhar?

Nota: uma novidade deste relatório é a criação de um Atlas Interactivo. A comparação com o nível de vida na Suíça é um dos muitos exemplos que constam do livro The Story of More de Hope Jahren, cuja leitura recomendo vivamente.