Mitos sobre a saúde oral na gravidez

Um aumento do consumo de hidratos de carbono de consumo rápido e de alimentos com um alto índice glicémico, associados ao aumento da placa bacteriana, edema gengival e desmineralização dentária levam à perda dentária.

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Caroline LM/Unsplash

Como médica dentista há uma situação com que me deparo há anos e que gostaria de ver desmistificada. Cerca de 90% das futuras mães que recorrem à nossa consulta têm presente que a gravidez acarreta perda da estrutura dentária e, acima de tudo, que o bebé vai “roubar” o cálcio da mãe, daí haver tantos problemas na sua saúde oral. Há ainda o mito de que, as futuras mães, não se podem submeter a tratamentos dentários, na medida em que os anestésicos vão influenciar o desenvolvimento do bebé.

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Como médica dentista há uma situação com que me deparo há anos e que gostaria de ver desmistificada. Cerca de 90% das futuras mães que recorrem à nossa consulta têm presente que a gravidez acarreta perda da estrutura dentária e, acima de tudo, que o bebé vai “roubar” o cálcio da mãe, daí haver tantos problemas na sua saúde oral. Há ainda o mito de que, as futuras mães, não se podem submeter a tratamentos dentários, na medida em que os anestésicos vão influenciar o desenvolvimento do bebé.

Ora, vamo-nos lá debruçar sobre estas questões:

É bem verdade que na gravidez, o corpo da mulher vai sofrer inúmeras alterações quer hormonais, quer físicas, quer até envolvidas com o seu ritmo circadiano. E todas as alterações vão fazer com que este sistema altamente complexo que é o nosso organismo tenha de se adaptar a esta nova condição. Assim sendo, a principal mudança vai ocorrer a nível do relaxamento muscular e do aumento da vascularização (irrigação) dos tecidos. Ao longo de nove meses, o corpo de uma grávida adapta-se ao crescimento do bebé e à preparação para o dia do parto.

A nível da cavidade oral, verificamos que o aumento da vascularização vai fazer com que os tecidos orais fiquem mais susceptíveis a bactérias que até então se encontravam na nossa boca e não eram patogénicas. Assim, a maior irrigação dos tecidos orais, juntamente com um aumento de hormonas circulantes (progesterona e estrogénio), faz com que a P. gingivallis e a Prevottela iniciem um processo de destruição periodontal (destruição da gengiva, ligamento e osso). Deste modo, é frequente encontrarmos grávidas com as suas gengivas muito inflamadas e com uma coloração avermelhada devido ao edema e hemorragia gengival.

Facilmente se percebe que outro quadro clínico presente na grávida é a mobilidade dentária, pois o ligamento periodontal (fibras que fazem a união do dente ao osso e à gengiva) apresenta uma lassidão comum a todos os tecidos musculares, o que faz com que os seus dentes apresentem alguma mobilidade

Além deste facto, as futuras mães deparam-se ainda com duas situações que aumentam drasticamente os níveis de placa bacteriana: náuseas, vómitos matinais e sono à noite. Ora, se de manhã é difícil efectuar uma boa escovagem porque os vómitos são uma presença constante, a última escovagem do dia (e sem dúvida a mais importante), quase nunca é feita, devido ao sono que apresentam.

Os vómitos vão ainda provocar erosão dentária, pois vão baixar significativamente o pH da boca, levando a uma desmineralização de duas camadas dentárias, o esmalte e a dentina.

Deste modo, se já nos deparávamos com uma natural destruição dos tecidos orais devido ao aumento hormonal, se a este facto juntarmos um aumento natural de placa bacteriana, temos um quadro ainda mais exacerbado.

Ao nível da cárie dentária, a dieta de uma grávida é de extrema importância, senão vejamos:

Um aumento do consumo de hidratos de carbono de consumo rápido e de alimentos com um alto índice glicémico, associados ao aumento da placa bacteriana, edema gengival e desmineralização dentária levam à perda dentária.

Gostaria ainda de dispensar alguns minutos sobre uma questão que quase nunca é falada e certamente desconhecida por muitas pessoas: a condição inflamatória causada pelo aumento de P. gingivallis e Prevotella leva a uma condição denominada de Gengivite Gravídica, que tem vindo a ser associada ao risco da grávida desenvolver outras doenças inflamatórias. Entre estas, a artrite reumatóide, glomerulonefrite (inflamação renal) e arteriosclerose (doença silenciosa, mas com grandes repercussões cardíacas e cerebrais).

Esta condição inflamatória aumenta ainda a probabilidade do nascimento prematuro do bebé.

É ainda de salientar que os microrganismos responsáveis pela cárie dentária são adquiridos na infância, através da transmissão salivar directa da mãe; e se já vimos que durante a gestação o risco cariogénico aumenta, uma boa higiene oral da mãe vai fazer com que o bebé apresenta pouca susceptibilidade para o desenvolvimento de cáries.

A utilização de anestesia (lidocaína até 2 anestubos) nos procedimentos dentários é perfeitamente inocula; e a realização de RX pode sempre ser feita, recorrendo ao uso de avental de chumbo.

Em suma, a grávida não só pode como deve ir a consultas de medicina dentária de três em três meses durante o período de gestação, de modo a despistar alguma condição oral e/ou realizar tratamentos de modo a que não haja necessidade de se realizarem extracções.

Esta indicação aplica-se também em tempos de pandemia. Isto porque o receio de apanhar covid-19 em meio hospitalar ou em clínicas dentárias não pode, nem deve, ser motivo para adiar a prevenção da saúde oral da grávida. É importante que se saiba que as unidades de saúde aplicam minuciosamente circuitos e protocolos, emanados pela Direcção-Geral de Saúde, pela Ordem dos Médicos Dentistas, e pela própria CUF, de forma a promover a segurança dos doentes e profissionais.

Aliás, segundo a Sociedade Portuguesa de Periodontologia e Implantes existe uma associação directa entre patologias da cavidade oral, nomeadamente a Periodontite (doença associada a problemas gengivais), e a covid-19, nestas proporções:

  • 3,5 vezes mais provável de um doente com esta condição ser admitido nos Cuidados Intensivos
  • 4,5 vezes mais provável necessitar de ventilação assistida
  • 9 vezes mais provável morrer por covid-19

Não querendo fazer destes números, um factor alarmante, uma boca saudável em tempos pandémicos como os actuais, torna-se ainda mais importante, de modo a não haver riscos acrescidos.

Aproveito ainda para deixar uma dica: a gestante deverá ter muito cuidado com a sua dieta, pois se o peso é um factor determinante durante nove meses, a quantidade de alimentos ricos em açúcares tem influência directa no aparecimento de cáries. E, acima de tudo, manter uma boa higiene oral, aconselhar-se com o seu médico dentista sobre o dentífrico e colutório adequados à sua condição.

Se assim o fizer, certamente o provérbio “um dente por filho” deixará de fazer parte do nosso quotidiano.