O Verão cresce em nós
O Verão não nos abandona. Vai-se cumprindo a cada novo ano, escultor que não se conforma, estação que não estaciona.
No princípio, eram as formas. De polvo, de peixe, de estrela. Areia molhada dentro e, viradas ao contrário, faziam nascer réplicas daqueles bichos debaixo dos meus olhos. Magia sedimentada. Criador e criação ante o olhar inaugural. Eu era bebé e toda a praia sorria. Nessa altura, a maior recordação que eu levava do Verão era uma garrafa de plástico cheia de conchas. Estava no auge da existência. No topo do castelo, muitas vezes literalmente. Depois, eu cresci e o Verão comigo. O Verão cresce connosco e em nós. Acompanha a largada das braçadeiras e a introdução da bóia redonda, conquista marcante. Mais à frente, a chegada da total liberdade, saudada pela nova e sensacional capacidade motora que é a de nadar. Desembaraçada de todas as amarras de plástico que os pais tão aflitos correm a enfiar-nos ao longo dos primeiros anos de vida, nada me detinha. Tudo era regozijo. As pessoas mudavam de cor. Mais escuras, mais rosadas, mais douradas. A paleta da vida que se alegra. E o tempo, a sua extensão para lá das regras, o sol que tarda a pôr-se e que, como nós, quer alongar-se neste prazer sem preceito. As primeiras bolas de Berlim, de açúcar e areia. A confiança nos mergulhos a elevar-se à proporção das ondas. Os pais a enrolarem-nos nas toalhas. Um calipo de morango e um terere no cabelo a pingar. As amizades embrionadas pelo Verão através das rodas, dos jogos do prego, das cartas. Grupos que renascem a cada ano, que só fazem sentido existir naquela combinação de tempo e espaço, que se evaporam nos restantes meses, submetidos a um silêncio inquebrável.
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No princípio, eram as formas. De polvo, de peixe, de estrela. Areia molhada dentro e, viradas ao contrário, faziam nascer réplicas daqueles bichos debaixo dos meus olhos. Magia sedimentada. Criador e criação ante o olhar inaugural. Eu era bebé e toda a praia sorria. Nessa altura, a maior recordação que eu levava do Verão era uma garrafa de plástico cheia de conchas. Estava no auge da existência. No topo do castelo, muitas vezes literalmente. Depois, eu cresci e o Verão comigo. O Verão cresce connosco e em nós. Acompanha a largada das braçadeiras e a introdução da bóia redonda, conquista marcante. Mais à frente, a chegada da total liberdade, saudada pela nova e sensacional capacidade motora que é a de nadar. Desembaraçada de todas as amarras de plástico que os pais tão aflitos correm a enfiar-nos ao longo dos primeiros anos de vida, nada me detinha. Tudo era regozijo. As pessoas mudavam de cor. Mais escuras, mais rosadas, mais douradas. A paleta da vida que se alegra. E o tempo, a sua extensão para lá das regras, o sol que tarda a pôr-se e que, como nós, quer alongar-se neste prazer sem preceito. As primeiras bolas de Berlim, de açúcar e areia. A confiança nos mergulhos a elevar-se à proporção das ondas. Os pais a enrolarem-nos nas toalhas. Um calipo de morango e um terere no cabelo a pingar. As amizades embrionadas pelo Verão através das rodas, dos jogos do prego, das cartas. Grupos que renascem a cada ano, que só fazem sentido existir naquela combinação de tempo e espaço, que se evaporam nos restantes meses, submetidos a um silêncio inquebrável.
Nos jogos de raquetes, joga-se sem destino, sem contagem. O importante é o movimento, a bola sobe, projecta-se para o outro, ecoa na raquete de madeira. Nada mais existe que não som e gesto. Toda a praia se dissipa. “Em quantos vamos?” Ninguém está a contar.
O Verão acompanha-nos. Desvendando novas nuances, abrindo novas possibilidades, mostrando-se renovado a cada nova fase de vida. Vamos crescendo. A saltitar entre grupos estendidos nas toalhas. Surgem como ondas as primeiras paixões, inflamadas pela aura daquele tempo sem lei, daquele torpor, daquela entrega à nossa humanidade sem compromisso. O terreno prolífero do romance, da amizade, do convívio. O eterno Éden.
Com a chegada às brumas da adolescência, o Verão continua a superar-se e entrega zelosamente as primeiras boleias e as primeiras cervejas. Revela-se, mais uma vez, o cenário ideal, desta feita para essa fase em que os amigos são nossos siameses e em que largá-los para uma semana na companhia apenas dos progenitores parece uma ideia absurda. Essa fase em que partilhamos tudo com eles, desde cama a pizzas às três da manhã na cozinha, a fofocas e sonhos mais profundos. Por aí são-nos apresentados os festivais de Verão, onde acordar com um bêbado a gritar num megafone, com um sol abrasador e com almôndegas à porta da tenda, por alguma razão, é a maneira mais maravilhosa de preencher a existência. O Verão está preparado para tudo, até para atender as exigências peculiares de satisfação de um adolescente. É também ele que alberga as primeiras saídas à noite. São tempos em que a preparação para a noitada leva mais horas e tem mais aprumo que a preparação que antecede os Óscares. Grupos de amigas trocam roupas até ao infinito, isto é, até se sentirem suficientemente despidas e empoleiradas em tacões de cortiça para pisar pistas de dança que funcionam como estufas hormonais. O Verão acolhe todas as histórias e loucuras sem julgamento acerca de uma chegada à praia às quatro da tarde após uma noite longa.
Continua a acompanhar-nos nas fases seguintes. Vê-nos chegar ao momento inesperado em que sentimos necessidade de almoçar de garfo e faca. É mais ou menos aí que se torna oficial que atingimos a idade adulta. Isso e quando damos por nós a falar bastante sobre os benefícios da manhã e a usar o termo “revigorados”. E o Verão está lá para nós, apetrechado para nos receber e responder aos nossos novos desejos. Aí, ele apresenta-nos as esplanadas em cima do mar, as amêijoas e até as sestas. Pomos as leituras em dia, adquirimos uma cadeira de praia, projectamos o futuro durante passeios na maré vazia. Continuamos a caminhada. O Verão não nos abandona. Vai-se cumprindo a cada novo ano, escultor que não se conforma, estação que não estaciona.
Comecei na areia e à areia regresso. Acocorada, a desenterrar a forma do polvo. Vou ao mar encher baldes, corro para enfiar braçadeiras nos braços das minhas filhas. É Verão outra vez e é Verão pela primeira vez. Quem começa e quem prossegue. Uma praia com espaço para todos. Elas riem e correm, o Verão está a cumprir o seu desígnio.
Há quem conte a vida em Primaveras, eu preferiria contar em Verões. Mas Verão é movimento. Como nos jogos de raquetes, também estamos envolvidos nos gestos, nas cores, nos sons. Demasiado absortos para pensar em contagem. Não há cálculo que sobreviva à fruição. É a renovação que aniquila a conta mas é também nela que subsiste a ordem. Nas crianças desponta uma felicidade sem pausa. No mar agitam-se eléctricos reflexos. Na garrafa já temos as conchas. Mais um Verão. Em quantos vamos? Ninguém está a contar.