O concurso de projetos da FCT: a raspadinha da investigação
Com taxas de aprovação de 6%, onde 70% da avaliação resulta de opinião, é mesmo de sorte que estamos a falar, assumindo os concursos a forma de uma espécie de raspadinha da investigação.
Na última semana de julho, a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) divulgou os resultados do concurso de projetos de investigação científica e desenvolvimento tecnológico em todos os domínios científicos. Ainda que tenha registado aspetos positivos, há ainda muito a melhorar nestes processos para promover a investigação científica em Portugal.
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Na última semana de julho, a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) divulgou os resultados do concurso de projetos de investigação científica e desenvolvimento tecnológico em todos os domínios científicos. Ainda que tenha registado aspetos positivos, há ainda muito a melhorar nestes processos para promover a investigação científica em Portugal.
Antes, devo fazer uma declaração de interesses. Submeti um projeto como Investigador Responsável no painel de História e Arqueologia, que não foi selecionado para financiamento. Participei como membro de equipa em três candidaturas, duas das quais foram aprovadas. Tenho, portanto, razões de contentamento e de descontentamento com os resultados deste concurso.
Comecemos pelos aspetos positivos, entre os quais destaco o curto prazo decorrido entre o encerramento do período de candidaturas e a divulgação dos resultados (98 dias úteis, se os cálculos não me falham). A celeridade nos processos de avaliação é crucial para que os investigadores não mantenham as suas vidas e carreiras em suspenso por tempo desnecessário.
Outro aspeto positivo refere-se à intenção de conservar alguma regularidade no calendário de concursos. Tal como no procedimento anterior, as candidaturas decorreram entre janeiro e março, com o aviso de abertura a ser publicado em novembro do ano anterior. Com esta estabilidade, que – creio eu – todos desejam, os investigadores sabem de antemão a partir de quando devem começar a preparar as suas candidaturas, ao invés de serem apanhados de surpresa com o anúncio de novo concurso numa data aleatória.
De louvar é ainda a inclusão do modelo de projetos exploratórios, mais curtos, de menor envergadura e orçamento, destinados “à exploração de ideias ou conceitos que sejam considerados como apresentando originalidade e/ou potencial de inovação”. Espera-se que seja um modelo a manter no futuro.
Entre os aspetos negativos, ao olhar para os dados fornecidos pela FCT sobre a distribuição dos recursos disponíveis pelas diferentes áreas científicas, nota-se uma clara preferência pelas disciplinas ligadas às engenharias, ciências exatas e inovação tecnológica, com uma evidente subvalorização das humanidades e ciências sociais. Naturalmente, um governo democraticamente constituído tem toda a legitimidade para priorizar determinadas áreas em detrimento de outras. Contudo, seria desejável uma distribuição mais equitativa dos recursos, que deixasse de ver a inovação técnica como a panaceia para todos os males e base de todo o progresso, e que visse nas humanidades e ciências sociais um recurso chave para enfrentar alguns dos problemas do nosso tempo. Questões como as fake news, o racismo, a homofobia, a literacia digital, o envolvimento cidadão na gestão da república e na vida democrática, os desafios dos aspetos sociotécnicos da implementação de sistemas tecnológicos resolvem-se através do estímulo do espírito crítico dos indivíduos, para o qual as humanidades e ciências sociais são áreas do saber cruciais.
Mais grave é verificar que a taxa de aprovação continua a ser exageradamente baixa, em virtude do reduzido valor orçado para estes projetos: 75 milhões de euros (o mesmo da edição de 2020). Ainda que esta crítica não possa ser diretamente imputada nem à FCT, nem ao ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Manuel Heitor, cabe a ambos pugnar para que aquela verba seja aumentada nos próximos anos. Como temos vindo a ver noutras situações (de que é claro exemplo a possibilidade de concessão de um auxílio de 3.2 mil milhões de euros à TAP, cuja utilidade e consequência são muitíssimo duvidosas), estamos mais perante uma questão de (falta de) vontade e prioridades políticas, do que propriamente de falta de recursos.
Adicionalmente, o modo como a FCT calculou e apresentou a taxa de aprovação é censurável e deve ser alterado, conforme já foi denunciado e sugerido por outros investigadores. Ao concurso foram submetidas 4870 propostas de projetos devidamente instruídas de acordo com o aviso de abertura. Dos 3987 projetos de investigação e dos 883 projetos exploratórios apresentados, foram aprovados para financiamento 246 e 305, o que corresponde a taxas de aprovação de 6,2% e 34,5%, respetivamente. Todavia, a FCT, de forma algo arbitrária, decidiu não considerar no cálculo das taxas de aprovação as candidaturas com uma nota final inferior a 7 pontos (numa escala de 0 a 9), tendo assim chegado aos valores de 8,7% e 56,7%, uma vez que só considerou elegíveis 2833 projetos de investigação e 538 projetos exploratórios. Esta regra, além de discricionária e aparentemente desprovida de qualquer critério científico, é perfeitamente inútil e apenas contribui para mascarar artificialmente o défice de financiamento na investigação. Aliás, nada impede que a FCT, em concursos futuros, eleve aquela fasquia para os 7,5 ou para os 8 pontos, fazendo com que a taxa de aprovação se aproxime dos 100%. Pode ser algo que concorra para que o titular da pasta da Ciência durma melhor, mas que pouco contribui para desenvolver o estado do setor em Portugal.
Ainda sobre este ponto, importa levar em linha de conta os recursos financeiros e de tempo que são despendidos na preparação das candidaturas e que acabam desperdiçados com taxas de aprovação tão baixas. Para isto, façamos o seguinte exercício especulativo. Suponhamos que os 4319 investigadores responsáveis que não viram os seus projetos recomendados para financiamento pausaram as investigações que estavam a desenvolver para se dedicarem em exclusivo à preparação das suas candidaturas durante dois meses (estimativa muito otimista e que pressupõe de forma irrealista que as propostas foram preparadas por uma só pessoa); suponhamos também que todos têm a categoria de investigador júnior (cálculo por baixo, uma vez que muitas categorias superiores apresentaram candidatura), ou seja, com um nível remuneratório mensal bruto de cerca de 2150 euros, o que equivale a um custo total (incluindo despesas do empregador) a rondar 2650 euros. O total de recursos desperdiçados com este concurso foi de 2650 euros × 2 meses × 4319 investigadores, isto é 22.890.700 euros. Pouco menos de 23 milhões de euros foram desperdiçados, porque as verbas alocadas ao concurso e as taxas de aprovação são baixíssimas.
Um outro aspeto que, no meu entender, merece uma reformulação por parte dos dirigentes da FCT diz respeito ao método de avaliação das propostas. Neste concurso, os júris de cada painel científico tinham três critérios para valorar cada projeto: o seu mérito científico e carácter inovador (critério A); mérito do Investigador Responsável e restante equipa (critério B); e qualidade e exequibilidade dos resultados previstos, bem como do orçamento proposto (critério C). Em termos simples, o critério B computa o que já foi feito, enquanto os critérios A e C apreciam o que irá ser feito; o critério B avalia algo mensurável e objetivo (o currículo dos investigadores, o que estes efetivamente já conseguiram ao longo das suas carreiras), ao passo que os critérios A e C resultam de um cálculo subjetivo sobre o valor intrínseco do projeto e da sua exequibilidade futura. Pois bem, de acordo com o aviso de abertura, os júris deviam valorizar mais o incerto, o que ainda está por realizar, do que o certo, do que as provas que efetivamente os investigadores já deram. O critério B, o único critério objetivo previsto, tinha um peso residual de apenas 30% na nota final, ficando o mérito do projeto com um peso de 40% e a exequibilidade do mesmo com outros 30%. Por outras palavras, 70% da nota final depende de uma apreciação eminentemente subjetiva de algo que até poderá não se vir a concretizar, ao mesmo tempo que o trabalho passado dos investigadores, o seu mérito, as provas e garantias que efetivamente já deram é subvalorizado. Isto pode levar a situações em que investigadores com mais provas dadas no passado e garantias de fazer um bom trabalho fiquem atrás de investigadores com currículos menos relevantes, mas cujos projetos tiveram a sorte de se identificar mais com os critérios dos júris – e com taxas de aprovação de 6%, onde 70% da avaliação resulta de opinião, é mesmo de sorte que estamos a falar, assumindo os concursos a forma de uma espécie de raspadinha da investigação.
Noutros contextos geográficos, o fator sorte foi assumido por inteiro, de tal modo que os financiamentos de projetos passaram a ser atribuídos por sorteio. Não me parece que esta seja uma medida acertada, nem desejo que seja implementada em Portugal. Em investigação, o trabalho científico não pode ser deixado à sorte, pelo que não faz sentido que esta esteja tão presente nos concursos. Para diminuir a sua presença, entendo que o peso do currículo das equipas de investigação na nota final das candidaturas deveria ser no mínimo 50%, idealmente aproximando-se dos 75%. Mas, mesmo assim, continuaria a registar-se o desperdício de recursos a que aludi anteriormente. Uma alternativa seria deixar de se realizar este concurso e distribuir equitativamente os 75 milhões de euros pelas 312 unidades de investigação financiadas pela FCT, o que corresponderia a um reforço anual de 18,5% no orçamento de cada uma (tendo em conta que o financiamento atribuído pela FCT às unidades de investigação para o quadriénio 2020-2023 foi de 405 milhões de euros). Deste modo, caberia a cada unidade decidir que projeto ou linha de investigação seguir, ao invés de estar sujeita à aleatoriedade do concurso de projetos.
Estas poderiam ser algumas soluções para contrariar a lógica atual de raspadinha da investigação, onde muito depende do acaso e onde imperam as baixas probabilidades de sair um prémio, que por norma vem acompanhada de um ciclo de desperdício de tempo, recursos, energia e dinheiro. De qualquer forma, o grande problema continua a ser o subfinanciamento do sector, que se repercute nas baixas taxas de aprovação. A candidatura de mais de quatro mil projetos não pode ser encarada como algo negativo que é preciso dissimular com cálculos duvidosos que excluem de forma arbitrária algumas delas, mas sim como uma prova do dinamismo do sector, resultante do investimento feito nas duas últimas décadas em formação de doutorados. Compete agora ao Governo e ao ministro da tutela fazer corresponder o investimento alocado à ciência ao capital humano disponível.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico