Demasiado rápida para ser mulher: um déjà vu nos Jogos Olímpicos de Tóquio

Aos competidores masculinos nunca foi solicitado que justificassem a sua “excessiva masculinidade”, a sua natural extrema rapidez ou a sua robusta composição, as quais são celebradas

Christine Mboma e Beatrice Masilingi foram impedidas de competir na corrida dos 400 m, nos Jogos Olímpicos de Tóquio. A história não é nova. Também Caster Semenya, Francine Niyonsaba e Margaret Wambui, as três medalhistas dos 800 m, nos Olímpicos do Rio de Janeiro, viram barrada a participação na prova deste ano. O que têm em comum? Além de africanas, são mulheres atletas que, segundo o Regulamento de Diferenças de Desenvolvimento Sexual (DSD) da World Athletics, não reúnem as condições de elegibilidade para as competições internacionais de atletismo feminino, nomeadamente as corridas de 400 a 1500 m, uma vez que apresentam níveis de testosterona superiores a 5 nmol/L.

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Christine Mboma e Beatrice Masilingi foram impedidas de competir na corrida dos 400 m, nos Jogos Olímpicos de Tóquio. A história não é nova. Também Caster Semenya, Francine Niyonsaba e Margaret Wambui, as três medalhistas dos 800 m, nos Olímpicos do Rio de Janeiro, viram barrada a participação na prova deste ano. O que têm em comum? Além de africanas, são mulheres atletas que, segundo o Regulamento de Diferenças de Desenvolvimento Sexual (DSD) da World Athletics, não reúnem as condições de elegibilidade para as competições internacionais de atletismo feminino, nomeadamente as corridas de 400 a 1500 m, uma vez que apresentam níveis de testosterona superiores a 5 nmol/L.

Semenya havia já contestado, junto do Tribunal Arbitral do Desporto, a legalidade daquele regulamento, obtendo uma decisão desfavorável, a qual foi confirmada, em sede de recurso, pelo Supremo Tribunal Federal suíço. Em fevereiro deste ano, a atleta submeteu uma queixa no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e esperamos, ainda, pelo seu desfecho. O caso das restantes atletas passou (quase) despercebido, já que “optaram” por participar nas provas olímpicas, mas em outras distâncias (com exceção de Wambui), sem porem em causa o regulamento. Contudo, o apuramento de Mboma para estes Olímpicos e a consequente conquista da medalha de prata, no passado dia 3 de agosto, fez ressurgir as discussões que pairam sobre estes critérios de elegibilidade, havendo quem questionasse se a atleta seria realmente mulher.

Esta foi sendo, durante décadas, e ainda hoje, a preocupação das autoridades desportivas internacionais: confirmar ou negar a “feminidade” das atletas. Os testes de sexo, que começaram, oficialmente, nos anos 60, passaram por várias modalidades:
(i) visualização e/ou toque da genitália e de outras características sexuais secundárias de todas as competidoras,
(ii) aplicação de um teste de cromossomas ou de testes “de saúde” e
(iii) inspeções visuais, apenas no caso de suspeitas e no âmbito do teste de antidoping. O objetivo seria o de, num primeiro momento, eliminar casos de fraude (em que homens se faziam passar por mulheres) e, mais tarde, banir a participação das atletas intersexo (erradamente denominadas “hermafroditas” ou com “distúrbios” de sexo), de modo a garantir a “justa competição” e a “integridade do atletismo feminino”.

O atual regulamento de DSD é aparentemente mais sofisticado, mas, na verdade, espelha os constrangimentos de sempre. Por um lado, reflete a menorização do atletismo feminino e a exaltação da masculinidade desportiva e, por outro lado, denota a alienação em relação à realidade intersexo e a perpetuação do referencial binário de sexo e de género. Não é possível aceitar que uma atleta possa ser, como qualquer pessoa em competição, favorecida por um conjunto de fatores (internos ou externos) que a tornam mais veloz e mais forte. Assim se legitimou o absoluto escrutínio do corpo, do sexo e do género das mulheres atletas que, por possuírem determinadas características físicas e biológicas, não correspondem aos cânones (já agora, ocidentalizados) de “feminidade”. Pelo contrário, aos competidores masculinos nunca foi solicitado que justificassem a sua “excessiva masculinidade”, a sua natural extrema rapidez ou a sua robusta composição, as quais são celebradas.

O pretenso objetivo do regulamento fica, assim, inviabilizado. O critério relativo ao nível de testosterona não pode, sozinho, assegurar a justiça competitiva. Esta fica, além disso, comprometida se, por um lado, não se aplica um parâmetro semelhante à categoria masculina e se, por outro lado, determinadas atletas deixam de poder aceder à competição, por possuírem certas características que lhes são inatas.

Acresce que a alternativa, disposta no regulamento, de aceitar a participação destas atletas caso reduzam os naturais níveis de testosterona é absolutamente reprovada por entidades internacionais médicas e de direitos humanos. Além disso, a prossecução do objetivo não justifica os graves e excessivos ataques à integridade física e psicológica, à privacidade, à dignidade e à identidade das atletas visadas. Este é o posicionamento, por exemplo, da World Medical Association, dos Princípios de Yogyakarta Mais 10, do Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas ou da carta dirigida à World Athletics por vários organismos das Nações Unidas.

É tempo de o atletismo internacional feminino acompanhar o discurso atual dos direitos humanos, nomeadamente dos direitos das mulheres intersexo. É tempo de aceitar que uma atleta possa ser forte, invencível e mulher, como cantava Helen Reddy, num dos hinos do movimento feminista: “I am strong, I am invincible, I am woman.


A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.