Tudo mudou, nada mudou nas viagens ao Algarve
Despedimo-nos de dona E. e eu não consigo deixar de pensar quando voltarei a vê-la, se voltarei a vê-la. Ela fica a acenar à porta até ao último segundo, nós aproveitamos para dar um passeio pelas ruas de Vila Real de Santo António e recordar os muitos anos em que por ali nos perdemos, entre lojas de atoalhados e amêijoas na cataplana, a ver os barcos passar para Ayamonte e às vezes a apanhar boleia deles.
Mais de 30 anos depois, continuo a saber a morada de cor, mas abstenho-me de a referir, por razões óbvias.
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Mais de 30 anos depois, continuo a saber a morada de cor, mas abstenho-me de a referir, por razões óbvias.
Dona E. vive em Vila Real de Santo António, Ayamonte à vista, e está quase a completar 90 anos. Mesmo em tempos de pandemia, arrisco tocar-lhe à campainha no primeiro dia do Verão deste ano – que, ironicamente, se apresenta no Algarve com céu nublado e um vento a dissuadir mergulhos e banhos de sol. Dona E. demora algum tempo a abrir a porta e passam-me várias coisas pela cabeça. Já sabia, desde 2017, que o marido morrera uns tempos antes e que ela vivia sozinha desde então. Mas a porta lá se abre e fitamo-nos máscara na máscara.
Dona E., o mesmo cabelo de prata que sempre lhe vi, não me reconhece. Baixo a máscara por uns segundos, mas nem assim. Quando lhe digo quem sou, abre os braços, como quem quer distribuir afectos, e solta as palavras com que nos recebia, Verão atrás de Verão, quando lhe batíamos à porta em Setembro para a nossa quinzena de férias em família: “Ó ‘miga’!” Este ‘miga’ deve ser lido como quem canta, não me ocorre outra maneira de definir a forma como dona E. fala.
Dona E. ainda não viu a minha mãe, que se esconde atrás de outra máscara dentro do carro. E quando a vê quase lhe caem umas lágrimas. “Ó ‘miga’, você está tão bem! Já eu…”. Sente-se sozinha, sente a falta do marido, sente a falta dos hóspedes que durante anos recebia naquela casa de Vila Real de Santo António e que arrumava em quartos às vezes improvisados mas sempre impecavelmente limpos e arranjados. Quantos Verões eu não dormi numa cama montada no corredor, escondida por uma cortina imaculada? Isto eram os anos de 1980/90, no tempo em que à porta das casas se instalavam umas tabuletas que anunciavam quartos, chambres, rooms, zimmer – e no tempo em que eu dormia em qualquer circunstância, mesmo num corredor onde estava sempre a passar gente, mas bom, eu tinha uma cortina imaculada para me isolar.
Dona E. está mal de uma perna, esteve até vários meses internada no hospital, mas gosta muito de nos ver às duas. Convidava-nos a entrar, mas esta coisa da pandemia… Ficamos uns minutos a conversar à porta, a minha mãe e ela a trocarem dores da viuvez e eu a pensar no quanto fui feliz naquela casa. Ou a partir daquela casa: às vezes íamos só os quatro, os de casa, pai, mãe, eu e o meu irmão, e coincidíamos com os netos da dona E.. Outras vezes ia a minha prima, a namorada do meu irmão ou outros amigos com quem partilhávamos mergulhos e coisas que tais, o que tornava as férias muito mais divertidas. Até que veio uma altura, quando éramos parvos, que deixámos de querer ir com os pais passar aquelas duas semanas a casa da dona E. e ficávamos na nossa casa de todo o ano. Armados em parvos, naturalmente.
Despedimo-nos de dona E. e eu não consigo deixar de pensar quando voltarei a vê-la, se voltarei a vê-la. Ela fica a acenar à porta até ao último segundo, nós aproveitamos para dar um passeio pelas ruas de Vila Real de Santo António e recordar os muitos anos em que por ali nos perdemos, entre lojas de atoalhados e amêijoas na cataplana, a ver os barcos passar para Ayamonte e às vezes a apanhar boleia deles.
Eu e a minha mãe vamos ficar uma semana no Algarve e esta vai ser uma semana de muitas memórias. Passamos a praia Verde, que tantas vezes frequentávamos; a do Cabeço, onde uma vez julguei que me afogava; o parque de campismo de Monte Gordo, onde às vezes ficavam uns amigos dos meus pais; o Aqualine – e quando o meu pai ficou parado no meio do escorrega porque era gordo e a água tinha pouca pressão? E o pregão do homem das bolas? É incrível como, mais de 30 anos passados, ainda retemos tantas lembranças das nossas férias em família no Algarve, que eram o ponto alto do ano.
Uma semana depois, lamentando-nos que a água, este ano, estava muito mais fria – “antigamente é que era, quentinha”, suspira a minha mãe –, fazemo-nos à estrada para voltar a casa, para voltar ao Norte. O rádio berra What a feeling e depois Paradise noutra estação, parece encomenda mas não é. A minha mãe cabeceia de sono enquanto rasgamos o calor do Alentejo. Tudo mudou, nada mudou, só alguns dos protagonistas: antes era eu que dormia estirada no banco de trás, agora sou eu que nos conduzo para casa, protegida por uma pala do sol que me queima a pele, o meu pai já não está cá para guiar uns quantos quilómetros de marcha-atrás porque a minha mãe se queixava do calor. Agora não se queixa, deixa-se dormir um bocado, enquanto à minha cabeça sobem mais e mais memórias, como aquela vez em que capotámos em Penela e fizemos o resto da viagem com os vidros da carrinha todos partidos e os nossos tarecos espalhados sabe-se lá por onde.
Éramos mesmo felizes naquela altura e não sabíamos. Depois armámo-nos em parvos. Mas ainda fomos a tempo de arrepiar algum caminho. Nada mudou, tudo mudou: chegamos a casa em quatro horas e meia e não foi preciso vir a voar, como fazia o meu pai.