As polémicas no adeus a Otelo
Vigilantes e descontentes. Apoiantes de Otelo clamaram pelo luto nacional, contestaram o Governo e deram vivas ao poder popular.
Foram cerca de duas centenas as pessoas que na manhã desta quarta-feira se despediram à distância do coronel Otelo Saraiva de Carvalho. Depois do velório de terça-feira, a cerimónia, antes da cremação em Alcabideche, junto a Cascais, foi reservada para familiares e amigos. A entrada deixou de ser pela escadaria da capela da Academia Militar, em Lisboa, e passou a fazer-se pela porta de armas da unidade.
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Foram cerca de duas centenas as pessoas que na manhã desta quarta-feira se despediram à distância do coronel Otelo Saraiva de Carvalho. Depois do velório de terça-feira, a cerimónia, antes da cremação em Alcabideche, junto a Cascais, foi reservada para familiares e amigos. A entrada deixou de ser pela escadaria da capela da Academia Militar, em Lisboa, e passou a fazer-se pela porta de armas da unidade.
Foi por ironia que o homem que confiava nas virtudes do poder popular tivesse entre o seu corpo e os que ainda acreditam nele os muros de um quartel. Otelo foi militar, chegou a general e morreu coronel, mas foi por duas vezes candidato a Presidente da República, fez comícios, distribuiu abraços quando ainda não havia selfies. Foi condenado por envolvimento com as Forças Populares 25 de Abril (FP 25), que entre 1980 e 87 praticaram actos de terrorismo que provocaram 17 mortes. Nunca reconheceu qualquer culpa, sempre afirmou a sua inocência.
Ao fim da manhã desta quarta-feira, na confluência da Rua Gomes Freire com a Dona Estefânia, os que o esperavam, entre os nove veículos do cortejo automóvel, contestaram a distância. Contraditório e polémico em vida, os seus seguidores seguiram à risca, até ao derradeiro momento, o seu exemplo. Vigilantes e desconfiados, criticaram que não houvesse luto nacional por “Óscar”, o estratega militar do 25 de Abril, e foram, duros, para a polémica.
“Oh Catarina, não seja ridícula! É uma vergonha, se estamos aqui, a este homem o devemos”, gritou um popular com muitos anos de vida a Ana Catarina Mendes, a líder da bancada parlamentar do PS. “Vim aqui a título pessoal com a minha mãe”, explicou a dirigente ao PÚBLICO. Minutos antes, as duas mulheres deixaram um ramo de cravos num carro funerário colocado à porta de armas para receber as oferendas.
O protesto gritado não ficou por aqui. A dirigente socialista foi interpelada, numa reacção de radicalismo tribal. “Esta não é a hora de discutir, mas de prestar homenagem”, disse uma voz que não teve eco. É bem verdade que a espera, o calor e a chegada da hora do adeus, despertaram cânticos - Grândola foi interpretada por duas vezes - e relançadas as mais diversas palavras de ordem. “25 de Abril sempre”, o mote das comemorações da Revolução dos Cravos, da autoria de Jorge Sampaio, à sua derivação “25 de Abril sempre, fascismo nunca mais”.
A memória recuperou “O Povo está com o MFA”, enquanto militares de Abril, de Sousa e Castro a outros de uma lista de convidados da Associação 25 de Abril, iam entrando. À porta, ficou Mário Tomé.
A actriz Maria do Céu Guerra juntou-se a um grupo que, além de Vasco Lourenço, da ministra da Justiça, Francisca Van Dunen, e, mais tarde, Isaltino de Morais, o autarca de Oeiras que o estratega militar do 25 de Abril viria, recentemente, a apoiar, marcava presença desde as 9h30 e incluía o antigo Presidente da República, Ramalho Eanes.
O camarada de armas, adversário nos caminhos do Processo Revolucionário em Curso e nas presidenciais de 1976 e 1980, mas amigo, tomou posição num comunicado enviado na segunda-feira à agência Lusa. Eanes, que foi testemunha abonatória de Otelo no julgamento das FP 25, atribui-lhe “a autoria de desvios políticos perversos de nefastas consequências”, mas sentenciou: “Otelo tem lugar de proeminência na História.”
O mesmo pensavam os que o esperavam. Não, apenas, na história do 25 de Abril, mas na sua própria, cuja memória foi avivada pela morte do seu símbolo. A emoção juntou-se à revolta e alguém grita “Viva o poder popular”. O sonho alternativo à democracia representativa que Otelo e a esquerda militar animaram até ao 25 de Novembro de 1975.
À espera da saída do cortejo, só, ficou Sousa e Castro. “Estou lixado, estou muito zangado com os anões políticos. Otelo é o símbolo do 25 de Abril”, desabafou, ao PÚBLICO, pensando no dia de luto que não existiu. E que, de vez em quando, era reclamado.
A antiga militância otelista, numa assembleia improvisada, sem agenda e ordem de trabalhos, olhava as movimentações com desconfiança. Ao mais ínfimo pormenor. O carro fúnebre para colocar os cravos da sua dádiva, dividiu opiniões. “Não é inocente”, esgrimiam uns, que tinham pensado em cravos lançados sobre o veículo que levava o corpo de Otelo. “É inocente”, argumentava outros, poucos.
Quando o Mercedes branco que transportava a urna, saiu, ocorreu a catarse. “Otelo, Otelo, Otelo”, gritaram. Depois a coluna, em marcha lenta, seguiu o seu caminho. Na A5, rumo a Alcabideche, continuava o seu percurso com piscas a funcionar, no anonimato do trânsito.