Amigo (será um conceito) maior do que o pensamento?

A amizade de todas as pessoas (com e sem autismo) constrói-se nos pequenos gestos e, para muitos, esses pequenos gestos são tudo o que precisam para se sentirem bem com a felicidade do outro. Simplesmente assim, sem muita reflexão e racionalização do tema. Hoje é Dia do Amigo.

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Sam Manns/Unsplash

“Traz outro amigo também!” Quem não ouve imediatamente os acordes da música de Zeca Afonso na sua cabeça quando alguém profere esta frase? Uma frase com um conceito que nos parece às vezes tão simples e outras vezes tão difícil de explicar.

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“Traz outro amigo também!” Quem não ouve imediatamente os acordes da música de Zeca Afonso na sua cabeça quando alguém profere esta frase? Uma frase com um conceito que nos parece às vezes tão simples e outras vezes tão difícil de explicar.

Trabalho há 12 anos com pessoas com autismo e, para quem convive com estas pessoas, é impossível nunca se ter questionado sobre o conceito de amizade em quem vive com este diagnóstico. A parte intuitiva dir-nos-á que é muito fácil de perceber quando alguém com autismo gosta ou não de outra pessoa. E, na verdade, a ausência de “filtros” manifesta-se nessa sinceridade (e às vezes desadequação) de reacções.

No entanto, a amizade não implica apenas gostar, mas sim querer o bem do outro, trabalhar para o bem do outro, eventualmente até pôr o interesse do amigo à frente do nosso próprio interesse. Será que as pessoas com autismo, onde um dos principais critérios de diagnóstico se prende com o défice na reciprocidade social e a dificuldade em estabelecer e manter relações com os outros, têm amigos? Será que existe conceito de amizade para quem se expressa através de reacções tão diferentes daquilo que é esperado na sociedade e segundo o manual de boas práticas? A minha resposta é: sim. Não posso provar cientificamente, porque acredito que se estudar o amor e a amizade já é tão difícil para quem tem um funcionamento neurotípico, seria algo louco propor que se estudasse a amizade em pessoas com autismo. Mas eu acho que sim. O segredo estará, como sempre, em observar o outro além do seu diagnóstico, mas enquadrando as suas reacções e os seus gestos naquilo que sabemos sobre essa pessoa.

Existe um exemplo, que tomou entretanto proporções de mito urbano ou de fábula na associação onde trabalho, porque o usamos muitas vezes para explicar o porquê de acreditarmos que existe este sentimento de amizade nas pessoas com autismo. Mesmo entre pessoas que não falam. Este exemplo envolve duas pessoas com autismo nível 3 (o mais grave), que partilham o uso de um lápis. O lápis é o objecto favorito de um deles, que o trata com honras e cuidado extremo, mas o dono desse lápis decide emprestá-lo apenas a um dos seus colegas de sala… Amigo? Ou apenas um gesto aprendido?

Na verdade, podemos ensinar e aprender muita coisa, mas uma relação de amizade implica uma espontaneidade e uma escolha que não pode ser definida por ninguém, senão pelo próprio. “Ensinamos” que amigos são todos, porque temos de ser bons para todos. Mas existe claramente, como em todas as outras pessoas, uma afinidade diferente com uns e outros. O exemplo do lápis é estranho, quando descontextualizado? Provavelmente. É uma atitude demasiado simples para podermos inferir acerca do seu significado mais profundo? Não concordo. Mais uma vez, temos de olhar para a pessoa dentro do seu contexto e das suas competências.

Amizade e sentimentos não implicam necessariamente que, conscientemente, se decida “quero ser amigo de alguém”. A amizade de todas as pessoas (com e sem autismo) constrói-se nos pequenos gestos e, para muitos, esses pequenos gestos são tudo o que precisam para se sentirem bem com a felicidade do outro. Simplesmente assim, sem muita reflexão e racionalização do tema. Termino, voltando à canção e ao verso “Amigo, maior que o pensamento”. Zeca Afonso não terá pensado em ninguém com autismo, mas deixou-nos uma frase que serve a todos e é tão verdadeira.

Feliz Dia do Amigo.