De Avignon ao Rossio
A nomeação de Tiago Rodrigues para Director do Festival de Avignon deve ser – e é – motivo de orgulho para o Teatro Português. Mas a pergunta impõe-se: Que herança fica do seu mandato?
Três questões, do meu ponto de vista (ou que eu com outros partilho), sobressaem no conjunto de erros – e mais do que erros, coisas de terríveis consequências – no actual panorama do Teatro em Portugal: a inexistência de Companhias (sequer de estruturas ‘continuadas’); a perda da noção de “carreira”, a insuficiência de espaços e/ou a sua programação. Espero de todos elas falar, mas se começo pela primeira é para poder abordar com um mínimo de espaço cada uma delas.
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Três questões, do meu ponto de vista (ou que eu com outros partilho), sobressaem no conjunto de erros – e mais do que erros, coisas de terríveis consequências – no actual panorama do Teatro em Portugal: a inexistência de Companhias (sequer de estruturas ‘continuadas’); a perda da noção de “carreira”, a insuficiência de espaços e/ou a sua programação. Espero de todos elas falar, mas se começo pela primeira é para poder abordar com um mínimo de espaço cada uma delas.
A designação de Companhia para definir uma estrutura de artes cénicas remonta ao Siglo de Oro, no que concerne ao Teatro. Existiam mesmo várias designações para caracterizar a natureza e dimensão delas. Começava pelo solitário Bululu, actor que actuava por si, de terra em terra, talvez antepassado do entertainer da Stand-up Comedy. Seguia-se o Ñaque, constituído por uma parelha, onde muitas vezes cada um se desdobrava em múltiplos papéis e por-aí-fora, como se dá conta no texto homónimo de Sanchis-Sinisterra (estreado em Portugal em 1986 pelo TEAR): Gangarilla, Cambaleo, Bogiganga, Garnacha e Farândula. Só chegando a Compañia, no topo, se pode falar de uma estrutura estável, com um elenco igualmente minimamente estabilizado para garantir um reportório transitando de ano para ano; alargada a outros artesãos e artistas que asseguram, integrando-a, outros sectores da actividade teatral; com local próprio para ensaios e apresentações; fazendo “carreira” com uma oferta regular.
O conceito de Companhia evoluiu, incluindo na formatação de aspectos de natureza jurídica, mas as condições antes apontadas, mais do que manterem-se, até evoluíram para uma maior exigência. Qualquer Companhia constituída a partir do século XX integra um elenco com resposta de 2 ou 3 alternativas para cada naipe de actores. Isto é para cada tipo de actores, distinguidos por género, idade, mesmo características físicas e aspectos singulares da natureza dos papéis. Embora estes, no evoluir do apetrechamento técnico dos actores e das diferentes abordagens de encenação, tenham passado, nos últimos 30 ou 40 anos, a corresponder a mais do que uma dessas características e a noção de naipe tenha sofrido evolução num sentido menos estratificado. Porém, se tomar o futebol por analogia, percebe-se isto com toda a evidência: para haver uma equipa de futebol (soccer, não de salão) começa por ser imprescindível apresentar 11 jogadores em campo. Mas para ter uma equipa minimamente organizada haverá jogadores com características de guarda-redes, defesas, médios, avançados; e se tem ambições profissionais, mesmo nas ‘Distritais’, de entre estes terá centrais, laterais, extremos, trincos, pontas de lança… E diz-se mesmo que tem de haver mais do que um para cada “posição”; mesmo se, no futebol contemporâneo, haja jogadores capazes de preencherem mais do que uma, às vezes do que duas, “posições”. A analogia encaixa mesmo muito bem.
Ora nada disto, ou parecido, existe no Teatro contemporâneo em Portugal. A última Companhia de Teatro foi extinta em 2001: a do Teatro Nacional Dona Maria II. Hoje, mesmo nos dois Teatros Nacionais, não existe mais do que um elenco muito residual ou actores, sem serem substituídos, a reformarem-se e naipes completamente vazios. Assim, além de co-produções (às vezes com elencos de 4 actores ou nem isso), as obras fazem carreiras curtas e esfumam-se logo, sem ficarem em reportório, ao contrário do que acontece na Royal Shakespeare Company, na Comédie-Française, Teatro de Arte de Moscovo, no Maria Guerrero...
É assim que desde o início do século XXI, em Portugal, o Teatro tem regredido em múltiplos aspectos, mas de forma alarmante na dificuldade de captação de novos públicos, sua fixação e alargamento, bem como no que seria o crescimento da massa crítica. Reconhecendo que, com a eclosão da pandemia, as medidas que se tomaram ao nível do Estado (ao caso através dos Ministérios da Cultura, Segurança Social e Economia) contribuíram para suspender a visibilidade deste declínio, não se vislumbram quaisquer outras medidas que se projectem para lá do assistencialismo e signifiquem inverter esta situação com vista a ser possível (re)criar um Tecido Produtivo Teatral adulto, continuado, de Serviço Público.
A nomeação de Tiago Rodrigues para Director do Festival de Avignon deve ser – e é – motivo de orgulho para o Teatro Português, pelo que significa do seu mérito pessoal. Mas a pergunta, a montante e a jusante do próprio, impõe-se: Que herança fica do seu mandato? Que há de estrutural repercutido do mérito do criador artístico no Dona Maria?
É incontornável a urgência da existência de Companhias nos Teatros Nacionais, e no Sector Privado financiado, em direcção a um Serviço Público. Isto é pedra angular de um edifício teatral estruturado e estruturante. De outro modo, a palavra estruturante aplicada a uma Política Cultural pode ser um adjectivo de um estado de alma, mesmo de um desejo sincero, mas substantivamente vazia de conteúdo e expressão de um discurso desestruturado.
Espera-se, pois, que a abertura de um Concurso Internacional para o cargo (como acontece no São Carlos) – aspecto incontornável para uma decisão transparente – inclua um Caderno de Encargos (e a formação de Companhia) no seu programa.