Sentir o pulsar da Terra no fundo do Atlântico
Entre os Açores, a Madeira e as Canárias, uma equipa multinacional encontra-se a instalar 50 aparelhos no fundo do mar que vão registar os sismos durante um ano inteiro. Com essa informação, far-se-á o retrato mais detalhado do manto terrestre. Tudo para perceber fenómenos que controlam a evolução global do planeta, como o vulcanismo.
Se pressionarmos dois dedos junto dos pulsos ou do pescoço, podemos sentir a nossa pulsação, que nos indica o bater do coração. É mais ou menos isso que uma equipa de cientistas coordenada pela sismóloga Ana Ferreira vai procurar fazer com o planeta – sentir o pulsar da Terra. Os “dois dedos” dos investigadores são sofisticados sismómetros que estão a ser largados no fundo do Atlântico Norte, numa vasta área entre os Açores, a Madeira e as Canárias, durante uma campanha de cerca de 35 dias no navio Mário Ruivo, do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA).
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Se pressionarmos dois dedos junto dos pulsos ou do pescoço, podemos sentir a nossa pulsação, que nos indica o bater do coração. É mais ou menos isso que uma equipa de cientistas coordenada pela sismóloga Ana Ferreira vai procurar fazer com o planeta – sentir o pulsar da Terra. Os “dois dedos” dos investigadores são sofisticados sismómetros que estão a ser largados no fundo do Atlântico Norte, numa vasta área entre os Açores, a Madeira e as Canárias, durante uma campanha de cerca de 35 dias no navio Mário Ruivo, do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA).
A campanha no mar, que partiu a 14 de Julho de Lisboa, marca o início de um projecto científico que valeu a Ana Ferreira, da University College de Londres, uma das muito concorridas bolsas do Conselho Europeu de Investigação (ERC, a sigla em inglês). Com os 2,84 milhões de euros que ganhou em Dezembro de 2020, a sismóloga portuguesa de 43 anos, há quase duas décadas no Reino Unido, pretende conhecer melhor, durante os próximos cinco anos do projecto, o manto terrestre – a camada da estrutura interna do nosso planeta entre a crosta e o núcleo, ou seja, entre os 30 e 3000 quilómetros de profundidade.
O projecto chama-se “UpFlow: UPward mantle FLOW from novel seismic observations” e o objectivo é precisamente investigar o movimento de subida para a superfície da Terra do material rochoso que compõe o manto terrestre. Ou, se quisermos, pretende-se fazer uma viagem ao interior da Terra. Como? Registando o pulsar vindo do interior do planeta, seja ele uma vibração que é mais como um sussurro ou mais como um rugido sísmico. “Os sismómetros vão registar sismos globais, assim como o ruído sísmico de background”, dizia Ana Ferreira ao PÚBLICO em Dezembro, quando ganhou a bolsa.
Com essa informação sísmica, os cientistas irão desenvolver um método inovador de obtenção de “imagens sísmicas”, que incorpora técnicas inicialmente propostas na área da astrofísica para o estudo de galáxias distantes, explica um comunicado da University College de Londres (UCL, na sigla em inglês). Essas imagens serão utilizadas para construir um retrato com uma resolução sem precedentes da subida do manto através das chamadas “plumas mantélicas” – zonas onde há ascensão de magma que vem de zonas mais profundas do manto até à superfície.
Ana Ferreira, que dirige uma equipa de investigação em sismologia global na UCL, também explicava a razão por que é tão importante saber mais sobre o manto terrestre. “O manto controla a ocorrência de sismos e erupções vulcânicas. O seu movimento de subida para a superfície controla a libertação de gases naturais para a atmosfera, influencia a evolução dos continentes, produziu mega-erupções vulcânicas há milhões de anos e pode vir a causar novas mega-erupções no futuro”, enumerava então. No passado, grandes episódios de ascensão de magma à superfície coincidiram com a ruptura de supercontinentes e grandes extinções de vida.
A expedição
Chegou agora a altura de lançar no mar os instrumentos, os sismómetros submarinos altamente sensíveis, que permitirão “espreitar” para o interior da Terra. “Estes instrumentos vão registar todos os movimentos do solo em contínuo, nomeadamente movimentos devidos a sismos em todo o mundo. Depois, sismogramas serão utilizados por nós para construirmos imagens do interior da Terra, nomeadamente para estudarmos os movimentos de ascensão no manto terrestre”, explica-nos agora.
No total, o projecto terá 50 sismómetros no fundo do mar, desenvolvidos de raiz por cientistas de vários países na equipa, incluindo Portugal: “Quatro já foram instalados numa campanha anterior em Junho por colegas alemães e nesta campanha vamos instalar 46”, conta Ana Ferreira. “São sismómetros semelhantes aos que utilizamos em terra e que permitem registar movimentos do solo muito pequeninos – por exemplo, devido a sismos muito distantes, que não podemos sentir –, mas com todo um sistema de protecção para que funcionem correctamente dentro da água”, acrescenta a investigadora.
Os sismómetros ficarão cerca de um ano no fundo do mar – inicialmente previam-se 18 meses, mas limitações de baterias encurtaram o tempo – e depois é preciso ir lá recuperá-los. “Cada instrumento é largado sozinho”, explica. “O sistema inclui uma âncora para prender os instrumentos ao fundo oceânico e um sistema de libertação através de sinais acústicos, que nos vai permitir recuperar os instrumentos daqui a um ano. Na altura da recolha, vamos enviar sinais para se abrir um gancho que prende o instrumento à âncora, o que o fará subir.”
A campanha leva 11 cientistas de vários países a bordo do navio Mário Ruivo e durante as cinco semanas no mar, que terminarão a 17 de Agosto em Lisboa, as novidades irão surgindo no site e no Twitter do projecto. Esta segunda-feira os cientistas estavam ao largo da ilha de São Miguel e já tinham lançado ao mar vários sismómetros.
O IPMA é parceiro oficial do projecto, que em Portugal inclui ainda o Instituto Dom Luiz, na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, e o Instituto Superior de Engenharia de Lisboa. Portugal contribuiu com o navio de investigação Mário Ruivo, que transporta os cientistas e os sismómetros tanto para a colocação no mar como para a recolha, bem como com os conhecimentos que tem da região dos Açores e da Madeira, na construção de alguns sismómetros e na análise e modelação dos dados sísmicos e na sua interpretação. Além do Reino Unido e de Portugal, o projecto envolve a colaboração de instituições na Alemanha, Irlanda e Espanha.
Zona pouco estudada
Porquê esta região? “É um laboratório natural pouco estudado onde ocorrem subidas significativas do manto, que são, em geral, mal compreendidas”, começa por se explicar num resumo do projecto. “O estudo está centrado na região dos Açores, Madeira e ilhas Canárias, porque é um ‘laboratório natural’ com vários vulcões e movimentos de ascensão no manto, que não se percebem muito bem”, acrescenta Ana Ferreira. “Por exemplo, será que as várias ilhas têm a mesma origem, entre centenas de quilómetros (100 a 200) até cerca de 2000 quilómetros de profundidade no interior da terra? Ou será que resultam de processos diferentes?”
É a primeira vez que uma experiência de sismologia no Atlântico Norte cobre uma área geográfica tão vasta, com esta duração e instrumentos de alta precisão – o que, prevê a responsável pelo projecto “UpFlow”, trará dados únicos que permitirão compreender a sismicidade e o vulcanismo nesta região do Atlântico Norte. E, de forma mais abrangente, possibilitarão a compreensão da dinâmica interna do nosso planeta – “por exemplo, o seu arrefecimento interno”.
A cientista põe-nos a par da discussão em curso relativa a esta enorme região entre os Açores, a Madeira e as Canárias. “Existe actualmente um debate científico sobre a origem em profundidade do vulcanismo na região. Será que resulta de processos relativamente superficiais no manto superior e crosta (até cerca de 100 quilómetros de profundidade)? Ou será que resulta de processos a grande profundidade, a cerca de 3000 quilómetros, e talvez até com ligações ao núcleo líquido da Terra? Estas são algumas das questões que queremos abordar”, explica.
O geofísico Miguel Miranda, presidente do IPMA e coordenador da participação portuguesa no projecto, salienta a este propósito no comunicado da UCL: “A existência das Canárias e das ilhas vulcânicas da Madeira e dos Açores é o resultado de enormes movimentos abaixo da superfície da Terra. A nossa investigação quer descobrir se existe uma ligação no aparecimento destas ilhas.”
Este tipo de missões já ocorreu noutras partes do mundo, como na zona da ilha da Reunião (no oceano Índico) e no Havai e noutras regiões do oceano Pacífico perto da costa continental dos Estados Unidos e do Japão. “Permitiram perceber muito melhor o que se passa no interior do nosso planeta, nomeadamente a origem do vulcanismo no Havai e na Reunião”, conta ainda Ana Ferreira. A essas informações já existentes para o Havai e a ilha da Reunião, além de aos novos dados para o Atlântico, o novo método de obtenção de imagens sísmicas será agora também aplicado.
“Estes resultados terão um impacto muito alargado para lá das áreas [geográficas] estudadas e nas várias ciências da Terra – por exemplo, geologia, geoquímica e geodinâmica –, uma vez que irão revelar fenómenos ubíquos fundamentais que controlam a evolução global do nosso planeta”, antevê-se no resumo do projecto.
Os dados registados pelos sismómetros poderão ter outras aplicações, como tentar encontrar tremores ligados a actividade vulcânica, salienta Ana Ferreira. Mesmo fora do mundo das geociências, os dados poderão ter aplicações que incluem a monitorização das baleias através dos seus sons. Pequenas gravações dos sons do próprio navio e de voz é também o que fará a equipa enquanto estiver no mar, para que o pianista de jazz e compositor britânico Liam Noble componha música inspirada na expedição.