Tauromaquia: adiar não basta

Em pleno século XXI, Lisboa continua a ser palco de um espectáculo terrível, no qual duas vítimas — o touro e o cavalo —, no limite do pavor, se enfrentam porque faz parte do espectáculo que se enfrentem em total desvantagem para ambas.

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Jon Nazca/Reuters

A tourada que inauguraria a temporada da Festa Brava no Campo Pequeno, a 9 de Julho, foi adiada devido a um parecer negativo da Inspecção-Geral das Actividades Culturais (IGAC), que determina que os “espectáculos tauromáquicos estarão proibidos por lei e até novas directrizes ‘em praças de toiros, locais ou instalações tauromáquicas'”. Só lamento que a resposta da IGAC não seja que as touradas estão proibidas por lei para sempre.

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A tourada que inauguraria a temporada da Festa Brava no Campo Pequeno, a 9 de Julho, foi adiada devido a um parecer negativo da Inspecção-Geral das Actividades Culturais (IGAC), que determina que os “espectáculos tauromáquicos estarão proibidos por lei e até novas directrizes ‘em praças de toiros, locais ou instalações tauromáquicas'”. Só lamento que a resposta da IGAC não seja que as touradas estão proibidas por lei para sempre.

Em pleno século XXI, Lisboa continua a ser palco de um espectáculo terrível, no qual duas vítimas, o touro e o cavalo, no limite do pavor se enfrentam porque faz parte do espectáculo que se enfrentem em total desvantagem para ambas, sobretudo para o touro, enquanto um “herói” chamado toureiro crava ferros no lombo de um, e esporas na barriga do outro. Dois seres a sangrar, a desfalecer e, eventualmente, a morrer na arena. Um deles, o touro, vai seguramente morrer fora da arena. Finda a lide, as bandarilhas são-lhe arrancadas, dilacerando ainda mais os músculos tão feridos. A agitação intensa e as suas vocalizações evidenciam bem o seu grande sofrimento. Enjaulado, sem espaço para se deitar durante o trajecto até chegar ao matadouro para o abate, o touro de lide não resiste às temperaturas muito elevadas do verão, e, com frequência, já chega morto ao matadouro. Mas esses são os bastidores ignorados. Findo o espectáculo, o que resta daquele animal magnífico é apenas um animal sozinho e numa agonia indizível. Como se pode falar em beleza, honra e valentia, neste antro de horror?

Regressemos à festa. E ao humano que lhe dá forma. Este pode achar que tem toda a “coragem” deste mundo e do outro. Pode cruzar o espaço circular em pontas, manobrando com destreza o belo capote e usar belos fatos que brilham. Mas um homem a espetar ferros grossíssimos no lombo de um animal é um homem a espetar ferros grossíssimos no lombo de um animal — e pronto. Com a diferença que o animal não escolhe estar na arena. As bandarilhas, nome dado a esses ferros enfeitados com pompons e fitinhas coloridas, rebentam, dilaceram e magoam com a maior brutalidade. Não há anestesia neste procedimento. Se houvesse anestesia, perdia a graça toda aos olhos dos que acham que é muito gracioso furar a pele e a carne de um ser vivo, entontecido e apavorado a lutar pela vida.

Expliquem-me a arte disto. A piada disto. A importância cultural disto. Pessoas a magoarem e matarem animais para distracção de outras. Expliquem-me como é que o Campo Pequeno continua a ser palco de tamanho horror? Ainda mais quando sabemos que os lisboetas não vão em touradas. Segundo uma sondagem realizada pela Universidade Católica, em 2018, 89% dos lisboetas não assistiu a nenhuma tourada na praça de touros do Campo Pequeno desde a sua reabertura, em 2006, e 69% da população não aprova o patrocínio da Casa Pia a este tipo de espectáculo.

Espectáculo esse, aliás, que a Casa Pia já está desobrigada de perpetuar desde que, em 2019, por pressão do PAN e da Plataforma Basta de Touradas, a Câmara Municipal de Lisboa enviou um ofício a essa instituição desobrigando-a de ali realizar touradas.

Por fim, regressemos ao vocábulo que cobre tanta coisa com o manto espesso e esfarrapado da “tradição”, usado ao longo de uma longa história de humanas aberrações para justificarmos o injustificável. Tivemos muitas que, felizmente, foram sendo desactivadas. Neste caso, a tradição da festa que ainda perdura é resquício dos ensaios para as guerras santas onde se lutava com o “inimigo” corpo a corpo, braço a braço, taco a taco. Tradição por tradição, que tal revivermos o pelourinho para todos percebermos de uma vez por todas que muita gente ainda aplaude, ri e gosta de ver sangue correr, seja esse sangue de pessoas ou de animais? Quando não é o próprio sangue que corre… porque aí a graça é desgraça.

Como sobreviver, ou melhor, viver com tanta agonia consentida à nossa volta? Porque a crueldade festivaleira contra o touro é apenas um fractal da brutalidade que reina contra os inocentes do costume. Pessoas incluídas, nas várias fases das suas vidas desvalidas, porque as vítimas são de todas as idades. Inaudíveis e invisíveis, integram a imensa multidão dos “outros” cujo sofrimento nos é alheio. E são faces da mesma moeda, que a arena reflecte em esplendor num espectáculo de insensibilização e ausência de empatia face ao outro, que é o touro. Com uma absurda ênfase num conceito de superioridade física que se quer evidenciar. Há muito pouco de humano, em tudo isto.