O pintor Nuno Gonçalves diverte-se no céu à custa dos cientistas da conservação

Um projecto de restauro como o dedicado aos Painéis pode ajudar a afinar novos desenvolvimentos tecnológicos que não sejam invasivos. É o caso da máquina XpeCAM X02, resultado de uma candidatura ao programa Horizonte 2020.

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Estão dez pessoas na sala a olhar para a máquina que chegou a Lisboa naquela manhã e que é capaz de mapear os pigmentos numa pintura. Ouvem-se expressões de sobressalto na sala do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), porque a imagem produzida parece indicar que há vermelho de cádmio no chapéu de São Vicente, o santo que dá o nome aos seis Painéis que estão a ser restaurados.

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Estão dez pessoas na sala a olhar para a máquina que chegou a Lisboa naquela manhã e que é capaz de mapear os pigmentos numa pintura. Ouvem-se expressões de sobressalto na sala do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), porque a imagem produzida parece indicar que há vermelho de cádmio no chapéu de São Vicente, o santo que dá o nome aos seis Painéis que estão a ser restaurados.

“Já enfiámos o chapéu”, ironiza o director do MNAA, Joaquim Caetano. A ser verdade, isso significa que o que estamos a ver não será a pintura original. “Quando é que começou a ser usado o vermelho de cádmio?” — atira alguém. E o director traduz: os dados parecem indicar que o chapéu pode ter sido inteiramente refeito num dos restauros mais recentes a que a pintura já foi submetida ao longo de 500 anos.

A máquina que veio de Braga, em fase de chegar ao mercado, é o resultado de um projecto de 1,2 milhões de euros financiado pelo programa Horizonte 2020, o principal instrumento de apoio à investigação na União Europeia. Utiliza a luz como ferramenta, uma técnica de análise não invasiva. As oito lâmpadas que estão voltadas para o painel do arcebispo, distribuídas por dois candeeiros diferentes, são capazes de captar 30 comprimentos de onda diferentes, que vão do ultravioleta ao infravermelho, passando pelo visível.

Com um nome bem sugestivo, XpeCAM X02, que parece saído de um livro de ficção científica, a máquina cria ficheiros virtuais ao processar os dados recolhidos. “É como se fossemos capazes de tirar uma fotografia 3D da luz, dos comprimentos de onda que estão a ser observados”, explica um dos fundadores da empresa XpectralTEK, António Cardoso, sobre esta máquina multi-espectral. Os ficheiros virtuais tomam a forma de um cubo espectral, que mais não é do que o acumular de várias imagens dos comprimentos de onda. De seguida, os dados são armazenados e geridos por uma plataforma online, onde uma solução de inteligência artificial é capaz de responder em tempo real às questões colocadas pelo utilizador sobre a superfície pintada.

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“Além de identificar as propriedades de uma substância em relação à luz, a plataforma é capaz de dizer se os pigmentos sofreram algum tipo de danos ou alterações provocadas pelo tempo e depois mapear na superfície em análise toda a distribuição desses materiais”, continua António Cardoso, também CEO da empresa de Braga. O maior desafio do projecto apresentado ao programa Horizonte 2020 foi transformar “o potencial tecnológico enorme da imagem espectral numa solução que realmente responda às necessidades do utilizador final”. Com a empresa XpectralTEK a liderar o desenvolvimento tecnológico, são parceiros do projecto universidades em Portugal, Holanda, Itália, Grécia e Reino Unido, numa tecnologia que neste momento também foi desenvolvida para ser aplicada à agricultura, com uma aplicação usada na gestão das vinhas e que é capaz de ler as plantas.

Tirar teimas

O sururu levantado pela presença do vermelho de cádmio deve-se a este pigmento sintético só ter começado a ser comercializado no início do século XX.

Mas António Candeias, investigador do Laboratório Hercules da Universidade de Évora, instituição parceira do restauro do MNAA e do projecto XpeCAM X02, levanta logo a hipótese de haver um segundo elemento que esteja a alterar a leitura do espectro. Será provavelmente uma laca capaz de dar transparência à velatura final dos Painéis, tal como já tinham revelado algumas micro-amostras retiradas directamente da superfície da pintura em 2011, numa investigação dedicada à técnica de Nuno Gonçalves realizada por José Mendes.

Para tirar as teimas, o investigador da Universidade de Évora sugere que se peça emprestado ao Laboratório José de Figueiredo, situado mesmo ao lado do MNAA, um aparelho portátil capaz de identificar num ponto único os elementos químicos.

“Estamos aqui em pulgas”, afirma Catarina Miguel, outra cientista-restauradora do Laboratório Hercules, quando chega a segunda máquina pouco depois. A pistola de fluorescência de raio X mais parece uma arma da Guerra das Estrelas, comenta a química. Apontada à pintura, revela maioritariamente mercúrio, algum ferro, vestígios de outros elementos, mas nada de cádmio. “O mercúrio e o ferro fazem todo o sentido. O mercúrio surge por causa do pigmento vermelhão e o ferro por causa dos ocres.” São dados que vêm corroborar outras análises feitas no Verão passado com uma câmara hiperespectral, capaz de indicar que nos panejamentos vermelhos a oficina de Nuno Gonçalves usava vermelhão e posteriormente aplicava uma laca de garança (corante vermelho extraído das raízes desta planta também conhecida como ruiva-dos-tintureiros), emprestando alguma transparência à pintura. “Esta análise da pistola tinha mercúrio e corrobora o nosso resultado e o do José Mendes.”

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Para Catarina Miguel (à esquerda), na sua experiência de quase 20 anos de restauro, o que mais evoluiu foi, sobretudo, a abordagem à obra de arte

A cientista da conservação-restauro confessa que muitas vezes imagina o artista a rir-se no céu, espantado com as ideias desvairadas que as suas pinturas provocam 500 anos depois: “Por vezes, alguns dos materiais que encontramos não parecem ter uma lógica aos nossos olhos e pensamentos do século XXI.” Já foi registado, por exemplo, o uso de cera do ouvido juntamente com clara de ovo para produzir algumas tintas vermelhas de iluminuras portuguesas do século XII, algo que os tratados de pintura também falam. “Imagino sempre o autor da obra a rir-se no céu ao pensar que usou uma determinada formulação de tinta ou uma determinada sequência de aplicação de cores porque lhe apetece, sem qualquer justificação racional ou metodologia. E nós, cientistas da conservação, desesperamos para explicar os resultados, que muitas vezes são somente o que são. Não têm que significar influências artísticas ou culturais, que tantas vezes procuramos.”

Técnicas imaging

A análise de uma obra de arte está longe de ser um processo rápido. “De facto, na maior parte das vezes, para chegarmos à resposta da questão que nos moveu a empregar um conjunto de técnicas analíticas de ponta que resultaram de investimentos de centenas de milhares de euros, são necessárias muitas horas de trabalho e discussão científica que nem sempre levam a uma conclusão certa”, continua Catarina Miguel.

O puzzle que se monta é feito recorrendo a várias técnicas de análise e um projecto como o restauro dos Painéis de São Vicente pode ajudar a afinar novos desenvolvimentos tecnológicos. “O que fizemos, entretanto, graças ao Hercules, foi pegar no comprimento de onda e no cubo que foi adquirido no museu e identificar que o material era uma laca com garança”, explica António Cardoso. “Neste momento, a própria plataforma já consegue identificar esses materiais se voltar a acontecer isto novamente. A inteligência da plataforma é essa. Ela aprende com os erros.”

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António Candeias e o Hercules colaboram com a empresa para testar o equipamento e tornar o sistema mais robusto. “O que nós queríamos era testar a aplicabilidade do equipamento. Estamos a trabalhar com eles para refinar a base de dados com mais pigmentos e com mais padrões. Estamos a pensar muito seriamente em adquirir aquela câmara.” Tal como com o XRF, a máquina que este laboratório da Universidade de Évora conta ter na sua posse o mais tardar no início de Outubro.

Para Catarina Miguel, na sua experiência de quase 20 anos, o que mais evoluiu foi, sobretudo, a abordagem à obra de arte. “Por exemplo, há 20 anos era bastante comum retirarem-se amostras de pinturas para serem analisadas em laboratório com técnicas muitas vezes pouco específicas. O evoluir da tecnologia permite-nos preservar ao máximo a integridade das peças. Neste momento, aliado a esta forte corrente de pensamento de recorrer o mínimo possível à micro-amostragem e o máximo possível a técnicas não invasivas, surgem as técnicas imaging, que nos permitem ter resultados em 2D ou 3D com grande resolução, que se traduzem numa melhor visualização dos resultados da obra como um todo. Dentro destas, incluem-se as análises com câmaras multi-espectrais, com câmaras hiperespectrais ou análises feitas com MA-XRF.”

Notícia corrigida às​ 11h45 do dia 12 de Julho: embora tenha sido um dos criadores e director do Laboratório Hercules, António Candeias é agora um dos seus investigadores.