A todos os escreventes e falantes da língua portuguesa: um pedido
Só me resta desejar que o “pôr-do-sol” não se transforme no “colocar-do-sol”. E que quem citar Camões não diga que Inês estava linda COLOCADA em sossego.
Certo dia, ouvi um entendido (dir-se-á hoje: um “especialista”) em comunicação explicar que um palestrante tinha mais probabilidade de provocar um efeito duradouro nas mentes dos ouvintes se repetisse dez, onze, doze vezes a mesma ideia, em lugar de expor dez, onze, doze ideias. Escreverei este texto à luz desse conselho.
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Certo dia, ouvi um entendido (dir-se-á hoje: um “especialista”) em comunicação explicar que um palestrante tinha mais probabilidade de provocar um efeito duradouro nas mentes dos ouvintes se repetisse dez, onze, doze vezes a mesma ideia, em lugar de expor dez, onze, doze ideias. Escreverei este texto à luz desse conselho.
Para quem está atento ao uso da língua, os verbos ser, estar, ter, fazer, poder, pensar, achar, dizer e haver são (acabei de empregar dois deles nesta frase) omnipresentes. O problema não é (eis o verbo ser) novo. O verbo ser é (ei-lo outra vez!) o mais utilizado, até pela dificuldade em reconhecer a repetição: éramos, fôssemos, é, somos são (ei-lo novamente!) conjugações verbais traiçoeiras, porquanto muitos não identificarão nelas, intuitiva e imediatamente, o ubíquo verbo ser.
Mas o problema gigante e de solução simples que aqui pretendo apresentar (apresentar e não “colocar”) é outro. Já não há pachorra para o verbo colocar. Não há hoje outro verbo para “questões” (quase não há perguntas hodiernamente, só questões), “dúvidas”, “cenários”, “hipóteses”. A toda a hora e em toda a parte, colocam-se questões, dúvidas, cenários, hipóteses, problemas, senhas, códigos, números, vírgulas, isto, aquilo e aqueloutro. Habitantes e frequentadores do espaço público, já chega. Cultivem a diversidade vocabular. Há outros verbos. Há outras formas de dizer.
Já não se põem os pontos nos is. Colocam-se.
Já não se põe em prática alguma coisa. Coloca-se.
Já não se põe em risco algo. Coloca-se.
Já não se põe em sentido. Coloca-se.
Já não se põe um ponto final no assunto. Coloca-se.
Já não se põe uma pedra no assunto. Coloca-se.
Já não se põe de parte. Coloca-se.
Já não se põe de lado. Coloca-se.
Já não se põe alguém na ordem. Coloca-se.
Já não se põe em ordem. Coloca-se. Coloca-se em ordem alfabética, por exemplo.
Já não se põe algo a funcionar. Coloca-se.
Já não se põe em destaque (podemos simplesmente “destacar”, recorde-se). Coloca-se.
Já não se põe alguém ao corrente de. Coloca-se.
Já não se põe em causa. Coloca-se.
Já não se põe em dúvida (podemos simplesmente “duvidar de”, recorde-se). Coloca-se.
Já não se põe a descoberto. Coloca-se.
Já não nos pomos no lugar do outro. Colocamo-nos.
Já não pomos o lixo no lixo. Colocamo-lo.
As informações já não são publicadas, divulgadas, inseridas; são colocadas.
Fulano já não se põe na/numa posição. Coloca-se.
Muitos já nem sequer se põem a par de. Colocam-se.
Muitos já nem sequer põem algo à venda. Colocam-no.
Muitos já nem põem o dinheiro no banco. Colocam-no.
Muitos já nem se queixam de que ponham palavras na sua boca que não disseram. Queixam-se de que coloquem palavras na sua boca que não disseram.
O futebolista já não põe a bola no fundo das redes. Coloca-a. Como a coloca nos pés ou na cabeça do colega de equipa. No basquetebol, também já se vai colocando a bola no cesto. Quanto ao mais, para o que quer que seja, já não se põe lá dentro (“meter” é outra opção); coloca-se lá dentro.
Mais vale a rendição total! Quando saímos de casa, não se diga que “pomos os óculos/a máscara”, colocamo-los/la. (Meter só se os pusermos dentro de algo.) Também não os/a guardamos algures. Colocamo-los/la algures.
Não raro, até já nem se deita ou põe água na fervura, “coloca-se”!
Não raro, até já nem se deposita ou põe a esperança em, “coloca-se”!
Não raro, até já nem se põe termo a, “coloca-se”!
Não raro, até já nem se põe cobro a, “coloca-se”!
Não raro, há até quem se “coloque a jeito”!
Não raro, até se “coloca o dedo na ferida”!
Não raro, até “colocar-se em fuga” se encontra! (Podemos simplesmente “fugir”, recorde-se.)
Não raro, até se “coloca em evidência”! (Temos evidenciar(-se), recorde-se.)
Não raro, até se “coloca a cabeça [a própria ou a de outro] em água”!
Não raro, até se “coloca a escrita em dia”!
Não raro, até se “coloca a nu”!
Não raro, até se “colocam as barbas de molho”!
Até “colocar o assunto para trás das costas” já li!
É de pôr os cabelos em pé! Que digo? É de colocar os cabelos em pé! Sabem que mais? Nesta matéria, já não ponho as mãos no fogo por ninguém. Perdão: já não “coloco” as mãos no fogo por ninguém.
Não tardará — deixará de se pôr a boca no trombone. Colocar-se-á.
Não tardará — as galinhas colocarão ovos.
Não tardará — “colocar-se ao fresco” triturará o “pôr-se ao fresco”.
Não tardará — passaremos a dizer: “Coloca-te fino/a!”
Não tardará — passaremos a afirmar: “Coloca-te bom/boa!”
Não tardará — diremos e escreveremos: “Colocou-se de joelhos.” (Podemos simplesmente “ajoelhar-nos”, recorde-se.)
Não tardará — passaremos a pedir: “Coloca-te bonito/a para mim.”
Não tardará — “pôr a mesa” será um arcaísmo, “colocar a mesa” triunfará. A mesa estará, por conseguinte, colocada.
Não tardarão a circular com naturalidade diálogos como:
— Já coloquei a carne a grelhar. O peixe está bom?
— Está óptimo, obrigado. Se puder colocar mais arroz e batatas, agradecia.
— Com certeza. Entretanto, posso colocar-lhe mais vinho no copo?
Com esta sobredosagem, com esta onda imparável, coloquialismos, vulgarismos e expressões rudes acabarão colonizados pela praga. “Põe-te a andar”, “põe-te a mexer”, “põe-te manso”, “põe-te daqui para fora”, “põe-te nas putas”, “põe-te a milhas”, “põe-te na linha”, “põe-te na alheta” tenderão a ser ditas e escritas com o verbo colocar. Procure hoje o leitor tais expressões com o verbo colocar. Viu? Já andam por aí.
Na fila da bomba de gasolina, ouvi um sujeito dizer a outro: “Olhe, coloque-se na fila, se faz favor.” Pareceu-me escutar o futuro. Qualquer dia, o João coloca-se a chorar e a Joana coloca-se a gritar, para depois se colocarem a cantar e a dançar.
Só me resta desejar que o “pôr-do-sol” não se transforme no “colocar-do-sol”. E que quem citar Camões não diga que Inês estava linda COLOCADA em sossego. Posta em sossego — elegância, economia, estilo, beleza, eufonia. Haja ouvidos que ouçam. Que acrescenta colocar a pôr? Sílabas, essencialmente.
Consulto dicionários de expressões idiomáticas e nem sequer encontro o verbo colocar. Folheio, entre outros dicionários, o Houaiss, e dele não constam expressões idiomáticas ou fixas no verbete “colocar”.
Ponham isto na cabeça, escreventes e falantes da língua portuguesa, mormente os do espaço público — ou se preferirem: coloquem isto na cabeça. De joelhos, imploro a todos: podem, por favor, por favor, por favor, por favor, por favor, por favor, por favor, por favor, moderar o uso de tal verbo?
Nota: “pôr” não perdeu o acento com o metuendo “novo acordo”, erro que se vê muito mais vezes desde a aplicação desse nefando instrumento, que, além de cês e pês, não estima hífenes e acentos. As publicações periódicas que assinalam que determinado autor segue “o novo acordo” deveriam, quase sempre, substituir tal inscrição por: “acredita que segue o novo acordo”.