A origem de Amália Rodrigues: um mistério centenário
Segundo a certidão de nascimento, Amália nasceu a 23 de Julho de 1920; mas a fadista soprava as velas a 1 de Julho. Consta que foi a própria a escolher esta data, por não se saber, com precisão, o dia do seu nascimento. A avó e a mãe ter-lhe-ão dito que nasceu no tempo das cerejas.
Amália Rodrigues é sinónimo de fado e de Portugal. No século XX, a fadista foi uma embaixadora cultural de referência, figura de proa da música portuguesa. Viveu intensamente, tantas vidas dentro de uma vida, e quando o seu corpo partiu, em 1999, foi a primeira mulher a receber honras de Panteão Nacional (a transladação ocorreu em 2001). A alma, a história e o legado ficaram connosco, deste lado. Afinal, falamos da eterna Rainha do Fado.
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Amália Rodrigues é sinónimo de fado e de Portugal. No século XX, a fadista foi uma embaixadora cultural de referência, figura de proa da música portuguesa. Viveu intensamente, tantas vidas dentro de uma vida, e quando o seu corpo partiu, em 1999, foi a primeira mulher a receber honras de Panteão Nacional (a transladação ocorreu em 2001). A alma, a história e o legado ficaram connosco, deste lado. Afinal, falamos da eterna Rainha do Fado.
Devo confessar que nutro uma profunda admiração por Amália. Lembro-me de a ver e ouvir na televisão, quando era mais novo, e de ficar assombrado com a sua presença, com o sofrimento na sua voz, o misticismo que a envolvia, as vestes negras que a embrulhavam.
Tinha eu nove anos quando Amália se fez eterna. Lembro-me de assistir à notícia da sua morte, de ver o automóvel que partia de sua casa, para a eternidade, em meio à multidão entristecida. O meu assombro por Amália vem do berço, já que a fadista eternizou um autêntico hino à cidade da Covilhã, a minha terra-mãe: o Covilhã, cidade neve, de Joaquim Pedro Gonçalves e Carlos Nóbrega e Sousa, ganhou vida e cor e embalo no seu timbre inigualável.
Curiosamente, só descobri as origens beirãs de Amália anos mais tarde. Alegrou-me sabê-la filha de pai albicastrense e mãe fundanense. Uma mulher do mundo com raízes profundas na Beira Baixa. Este seu vínculo beirão, tão próximo do meu, instigou-me a pesquisar a sua história, mormente as suas origens. Encontrei um emaranhado de datas e contradições. Um verdadeiro mistério centenário.
Comecei por verificar os relatos que davam conta de uma dupla celebração do seu aniversário. Isto é, segundo a certidão de nascimento, Amália nasceu a 23 de Julho de 1920; mas a fadista soprava as velas a 1 de Julho. Consta que foi a própria a escolher esta data, por não se saber, com precisão, o dia do seu nascimento. A avó e a mãe ter-lhe-ão dito que nasceu no tempo das cerejas.
Mas o mistério adensa-se, porque o enigma não se resume a uma divergência de dias. Amália pode ter nascido quatro anos antes.
Um artigo de José Barata de Castilho, professor catedrático e pintor, que descobriu recentemente ser primo em 10.º grau de consanguinidade da fadista, refere a possibilidade de esta ter nascido no Fundão não em 1920, mas em 1916. Esta versão não é inédita e já havia sido avançada pelo genealogista António da Graça Pereira, em 2012. Mais recentemente, Graça Pereira divulgou os costados de Amália e relação de consanguinidade da Rainha do Fado com a também fadista Alexandra.
Ora, mas a versão oficial, que consta de biografias em fontes de referência, refere que Amália nasceu em Lisboa, em 1920. Uma informação que reflecte o que a própria confirmou, em entrevista à revista Tabu, quando lhe perguntaram se havia nascido em Lisboa: “Na Rua Martim Vaz, que é perto da Calçada de Santana. Na freguesia da Pena (…). [os meus pais] vieram para casa dos meus avós maternos [em Lisboa], que já não eram ricos como antigamente, pensando que eles os podiam ajudar. Não conseguiram aquilo que queriam, e voltaram para a terra – de onde só saíram muitos anos mais tarde. Portanto, a única certeza que tenho é que nasci na casa da minha avó, estava lá a minha mãe.”
Quando lhe perguntaram pela família, respondeu: “O meu pai (…) era de Castelo Branco. (…) Era seleiro e sapateiro, mas gostava era de tocar cornetim. Um dia a família dele saiu (…) para ir trabalhar para a terra da minha mãe. Ele gostou logo dela. Ela gostou ainda mais dele, casaram-se, criaram dez filhos – e, dos que não criaram, eu sou um deles.”
Amália não foi criada pelos pais porque, como asseverou à Tabu, ficou entregue ao cuidado dos avós maternos, em Lisboa, e esteve praticamente nove anos sem ver a mãe. “Só fui lá uma vez [ao Fundão], tinha uns cinco anos”, garantiu. Ora, este seu testemunho parece corroborar a versão de que terá nascido em 1916, porque, segundo a certidão de baptismo, disponível na paróquia do Fundão, Amália Rodrigues foi baptizada a 6 de Julho de 1921, naquela cidade. Diz-se que, naquela altura, não era incomum registar o nascimento de um filho mais tarde, colocando a data de nascença mais aproximada do dia do registo para evitar o pagamento de uma multa. Talvez tenha sido o caso de Amália, não sabemos.
Estamos em 2021, a celebrar os 101 (será?) anos desde o seu nascimento, e a origem de Amália continua envolta em mistério. Um enigma que, possivelmente, não iremos decifrar.
Certo é que Amália Rodrigues, a mulher que nos arrebatou, tem uma costela beirã. Do Fundão para Lisboa e de Lisboa para o mundo, a Rainha do Fado prometeu cantar até que a voz lhe doesse. Prometeu e cumpriu. Desbravou caminho, uma voz sofrida, um génio muito seu, e elevou o fado a um patamar de excelência. Seja qual for, afinal, a sua origem, todos conhecemos o seu destino: a eternidade. Palmas, Amália. Palminhas.