De Caminha a Vila Real de Santo António a pé: a grande caminhada que mudou a vida de André Rocha
“É a tal aventura que se calhar todos nós gostaríamos de fazer”, diz André, com o orgulho de ter realizado uma odisseia inesquecível pela costa continental de Portugal. O local mais difícil de transpor foi a Arrábida. O mais deslumbrante, a Costa Vicentina. O GPS do percurso vai ser disponibilizado em breve.
Os primeiros dias foram de descompressão e lento regresso à normalidade. De novo em casa, no Porto, após perfazer passo a passo os 961 km da costa portuguesa, André Rocha confessa que até um simples escovar de dentes se pode tornar numa árdua tarefa: “Imaginem a adrenalina que é chegar a um sítio no qual se anda a pensar há dezanove dias. A seguir cai-nos tudo e entramos num estado meio abananado”.
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Os primeiros dias foram de descompressão e lento regresso à normalidade. De novo em casa, no Porto, após perfazer passo a passo os 961 km da costa portuguesa, André Rocha confessa que até um simples escovar de dentes se pode tornar numa árdua tarefa: “Imaginem a adrenalina que é chegar a um sítio no qual se anda a pensar há dezanove dias. A seguir cai-nos tudo e entramos num estado meio abananado”.
O fundador do The Escapist – uma organização de caminhadas sem fins lucrativos –, cumpriu o calendário previsto e atravessou todas as praias marítimas entre Caminha e Vila Real de Santo António em 19 dias, perfazendo uma média diária de 50 kms. Chegou ao extremo sudeste de Portugal Continental a 21 de Junho. O dia-a-dia da viagem foi sendo postado nas redes sociais, através do perfil de instagram Route 76, nome com o qual André Rocha baptizou o percurso.
A página chegou perto dos 2000 seguidores, um impacto muito acima daquele que o aventureiro portuense – que é também professor e gestor – tinha imaginado. Mas mais do que a quantidade de cliques gerados foi o tipo de mensagens e reacções que o surpreenderam: “Nas redes sociais há muita indignação e muito ‘hate’ [ódio], ali só havia palavras positivas”. Desde pessoas que lhe desejavam religiosamente os bons dias e as boas noites, a outros que o incentivavam ou lhe perguntavam qual era o destino daquele dia, André descobriu que o seu percurso podia inspirar outros a fazerem algo semelhante: “Percebi que isto é um processo identitário. Há muitas pessoas que também se revêm neste tipo de coisas, porque isto é a tal aventura que se calhar todos nós gostaríamos de fazer”, assinala.
Serra da Arrábida foi o momento mais difícil
Tal como previsto desde o início, uma réplica da caminhada vai ser colocada gratuitamente à disposição de todos os interessados, sob a forma de um percurso GPS. Há, no entanto, algum trabalho de depuração a fazer: André Rocha vai eliminar aqueles momentos (felizmente poucos) em que teve que voltar para trás e ainda adaptar uma parte do percurso que se revelou particularmente difícil: a travessia da Serra da Arrábida. “Há descidas para algumas praias e ravinas que são muito perigosas. Ainda bem que é assim, porque é uma zona natural protegida e é assim que tem que continuar a ser, mas acho que não é aconselhável de todo”, refere o caminhante.
Entre outros momentos complicados, André destaca a travessia entre Tróia e a Lagoa de Santo André: “Pelo que me disseram é a extensão de areal sem rocha mais comprida da Europa. São cerca de 50km que vão até Sines. Conseguimos ter ali uma visão quase de infinito”. A caminhada em si não é propriamente exigente, mas mentalmente é muito duro: “Tirando alguns aglomerados de pessoas, como a praia da Comporta ou do Carvalhal, não se vê uma única pessoa. Andei 5/6 horas seguidas em areais sem ver ninguém. Senti-me num mundo completamente Mad Max [filme norte-americano que retrata uma realidade pós-apocalíptica], com dunas de um lado e água do outro”.
Aos momentos mais difíceis estiveram também associadas algumas etapas mais positivas. Antes de entrar na Serra da Arrábida, por exemplo, pernoitou na Fonte da Telha, onde contactou com a comunidade de pescadores: “Conheci um Portugal completamente diferente daquele com que lido normalmente: uma comunidade piscatória que tem muitas cicatrizes, que se sente muito abandonada. Estivemos a conversar e ainda nos rimos bastante. Foram esses pescadores a dar-me as dicas para conseguir contornar a Arrábida”.
Um pouco mais a sul, mais propriamente ao atravessar a Costa Vicentina, André Rocha viveu um dos momentos mais inesquecíveis do seu trajecto: “Quando cheguei à praia da Cordoama estava tudo perfeito: o dourado da areia, o mar transparente. Fiz fotografias, que pus no Instagram, mas por mais bonitas que as fotos estejam falta-lhes a sensação: o sol a bater na pele, aquele cheiro do Alentejo e do Algarve que é inconfundível, que nos traz todo aquele imaginário de férias. Vivi tudo isso e de facto foram experiências memoráveis”.
A presilha que soltou o misticismo
O momento chave, próximo da epifania, estava contudo reservado para a ponta final do percurso, com a meta já à vista. Quando percorria o pontão que liga a praia de Vila Real de Santo António ao cabo onde fica a foz do Rio Guadiana, soltou-se uma das presilhas das botas de caminhada que tinha usado desde o início. “Com essas botas fiz 961 km. Estão todas rebentadas, mas vão ser emolduradas numa caixa e vão para a minha estante no sítio mais digno que houver lá em casa, na nossa sala de estar”. Sem aquela presilha não é possível caminhar longas distâncias, porque os atacadores se soltam imediatamente.
“Se aquela peça tivesse saído antes, eu não tinha forma de acabar a caminhada e danificou-se 500 metros antes do fim...”, nota André Rocha. “Eu sei que isto é uma coincidência, mas naquela altura emocionou-me imenso. Isto prova a comunhão que temos com o nosso património durante aqueles dias. Nada nos pode falhar. E neste caso só falhou quando podia falhar. Isto é um bocadinho místico. Deu-me uma sensação estranhíssima. Foi a primeira vez que eu senti uma ligação forte com coisas”.
À chegada, e para partilhar de todo este turbilhão de emoções, tinha a mulher à sua espera, que o trouxe de carro de volta para o Porto. A família foi a “âncora” em que se apoiou para superar os momentos mais difíceis, ainda que a mãe, “preocupadíssima”, lhe pedisse insistentemente para regressar: “'Ó filho agora já chega, anda-te embora!'”, relembra o gestor entre risos. A principal lição que fica é mesmo a de religação a esse lado emocional: “Vivi uma empatia humana que eu já não estava à espera de encontrar em 2021 depois destas coisas todas que estamos a viver. Fica uma grande crença renovada no género humano”, enfatiza.
André Rocha fala também da construção de experiências e de memórias que sirvam de consolação afectiva para o futuro: “Quando tiver mais de 80 anos saberei que aos 44 fiz uma coisa da qual me orgulhei muito. Isto vai ser quase um seguro de vida, porque acho que me vou sentir emocionalmente reconfortado quando estiver a olhar para trás”. Quanto a novos projectos, para já prefere não os revelar, mas sempre vai reconhecendo que “O difícil nestas coisas é parar. Há uma inquietação, um desassossego, como diria o Fernando Pessoa, que fica e nos faz querer iniciar novos projectos”. Vejamos então que propostas nos reserva o The Escapist para o futuro. Até lá, é começar já a treinar.