O peixe seco ao sol faz parte da história, vende-se por todo o lado, mas é ilegal

Poucos países terão um domínio na secagem de peixe ao sol como nós, curamos quase tudo o que sai do mar. Vemos moreias a bailar nos quintais da Costa Vicentina, carapaus na praia da Nazaré ou gaiados na Madeira, mas raramente os encontramos nas ementas dos restaurantes. Porquê? Porque não se pode vender peixe seco ao sol. Sim, toda gente sabe que existe e é vendido, mas é ilegal.

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Somos campeões no bacalhau e, de Trás-os-Montes a Porto Santo, temos arte na preparação, secagem, demolha e confecção de inúmeras espécies de peixe. Por tudo e por nada criamos tertúlias, festivais gastronómicos e confrarias uma delas é mesmo do litão. A nova geração de cozinheiros recupera comidas e processos antigos e, para espanto de muitos, temos hoje livros de receitas com bolotas, algas e até garum, mas se alguém, por exemplo, for a um restaurante algarvio à procura de peixe seco vai ficar com a sensação de estar a recordar a rábula de Ricardo Araújo Pereira a imitar as teses comentador Marcelo Rebelo de Sousa na altura do referendo à despenalização do aborto. Depois de um dia em Tavira à procura de peixe seco, a conversa com alguém da restauração poderá ser mais ou menos assim.

- Seca-se peixe no Algarve?
- Claro, e de diferentes espécies. Fomos nós que ensinámos a arte aos espanhóis. E agora são eles que fazem a muxama.
- E esses peixes estão regularmente na ementa dos restaurantes?
- Não.
- Mas há peixe seco à venda, certo?
- Certo, em qualquer mercado.
- E é bom?
- Claro que é bom
- ...então... por que razão não há peixe nas ementas?
- Olhe, porque é proibido.
- É proibido, mas vende-se. É isso?
- Pronto, já chegou lá. Mas não me faça mais perguntas, não quero chatices com a ASAE.

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Em qualquer mercado algarvio podemos ver bancadas com carapaus, sardinhas, verdinhos, peixe-agulha, cavala, litão, ovas de polvo ou de outros peixes, raia, lulas e diferentes cortes de atum, tudo seco ao sol por processos tradicionais. Qual é o problema? É que, do ponto de vista legal, tais produtos não podem ser comercializados na restauração. Estranho? Já explicamos.

Quem chegue a Tavira e pergunte por Rogério Neves não terá sorte, mas se falar no Rogério que é neto do Carrula, aí as coisas mudam. E isto porque Rogério António dos Santos, o velho Carrula, é – apesar de retirado aos 95 anos uma referência em Tavira na arte de curar o polvo e as suas ovas. “Aprendi tudo com o meu avô. Quando era pequeno, ele levava-me à maré. Foi a partir daí que comecei a tomar o gosto por isto. A preparar o polvo sempre com água do mar a limpar os tentáculos e a metê-lo a secar. Já as ovas requerem outra técnica e outro tempo. Ficam sete a oito horas em salmoura. Depois metem-se a secar ao sol. Quando começam a inchar mete-se um peso em cima, para evitar que fiquem com buracos no interior.”

Da selecção dos polvos à época de captura, passando pela salmoura e pelo controlo do calor, humidade e circulação do vento, tudo contribui para um produto que, noutros tempos, tinha fama em festas populares ou jogos de futebol das redondezas. “O meu avô secava o peixe em casa e depois ia para as festas vendê-lo assado na brasa. O tentáculo de um polvo grande dava para três doses, cada uma a 100 escudos.”

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Peixe seco, um petisco por excelência

Guiados por Rogério Carrula, conhecedor de toda a gente que seca peixe em Tavira, vimos, no Mercado de Tavira, Sérgio Cataludo retirar uma ova de polvo para posterior secagem e Carlos Simplício preparar um peixe-agulha. Depois de limpo e com o peixe nas mãos, o peixeiro sentenciou o valor real da peça: “Este vale umas quatro cervejas.”

Na generalidade dos restaurantes algarvios, o peixe seco é, por regra, o petisco que os da terra levam para os cafés para justificar o consumo de cerveja ou de vinho. Não faz parte da ementa. As ovas que Rogério Carrula seca vende-as aos amigos, que as levam depois para os cafés e restaurantes.

O peixe seco está para os hábitos de alguns algarvios como o toucinho esteve para os alentejanos em tempos de penúria, quando levavam nacos de gordura curada que seriam depois fatiados finamente com uma navalha (formando as famosas pétalas de toucinho) para acompanhar um copo de três. Não se quer aqui dizer que os algarvios têm hoje necessidade de levar peixe seco para acompanhar cerveja ou vinho e reduzir o valor final da despesa. Nada disso. Têm é bom gosto. Sabem que uma ova de polvo ou um peixe voador valem mais do que uns tremoços ou um queijo seco. E, enquanto a cerveja e o vinho correrem, o dono do café não se importa que os clientes levem três quilos de cação seco. É negócio vantajoso para as duas partes.

Na esplanada do Retiro dos Caçadores, junto ao mercado de Tavira, Rogério mandou grelhar uma ova de polvo secada por ele, com a respectiva rodada de cerveja. Na mesa, a ova ou é servida simples, a forma recorrente, ou temperada com alho e azeite. Minutos depois, alguém que passou por perto deixa um peixe-agulha. Uma vez amanhado pelo especialista (retirar a pele e a espinha), nova rodada de cerveja. E nem meio-dia é.

Estávamos nós a provocar outros algarvios de língua afiada que petiscavam ao nosso lado por causa da ausência do peixe seco nas ementas quando alguém tem uma ideia: “Só se forem a Santa Luzia, aos Kakas. Aí talvez se safem, mas a esta hora é capaz de ser um bocado tarde porque eles almoçam cedo.”

Perante o olhar arregalado dos visitantes, lá informam que os Kakas são um grupo de rapazes entre os 30 e os sessenta-e-tal anos que se juntam todos os dias – Natal incluído – no café Parra, na capital do polvo, entre as 11h30 e as 13 horas para discutirem e avaliarem o estado do mundo e resolverem os problemas de cada um dos associados. Questões de saúde, zaragatas familiares ou administrativos (o drible a um teste covid para alguém que tem de viajar para a Suíça), tudo se resolve com um telefonema, entre um copo de vinho, um comentário sobre André Ventura e um pedaço de agulha seca. O lema dos Kakas – que até têm direito ao nome de uma rua por cortesia do presidente da Câmara Municipal de Tavira – é este: “Nós resolvemos tudo tudo menos o caso Maddie”. E porquê o nome Kakas? “Ah”, diz um dos presentes, “temos a mania que percebemos de tudo, somos uns cagões. E, pronto, lá ficou o grupo dos Kakas, com K, que é mais fino. Como a gente aqui chama a um copo de vinho um cagão, ficámos os Kakas.”

Presidente informal do grupo e homem do mar, Isaltino Sacramento, que tem à sua frente os restos da pele de um peixe-agulha, dita a sentença sobre a ausência de peixe seco nos restaurantes: “Os que secam peixe e os donos dos restaurantes sabem que isto, da maneira como é feito, é um processo barato. Cada um de nós seca peixe em casa ou no barco. Por exemplo, uma agulha destas como estamos aqui a comer sai-nos a 20 cêntimos. Já para o dono do café, ele teria de vendê-la a 1,50 euros. Qual é o pescador que vai pagar 1,5 euros quando tem isto em casa por 20 cêntimos? Quem tem peixe seco em casa traz para o petisco no café ou num restaurante. A malta aqui não compra peixe seco nos cafés.”

Mas, perguntamos nós, se o peixe seco é um pitéu, os turistas, nacionais ou internacionais, não pagariam o que fosse necessário por peixe seco? As opiniões dividem-se. Uns concordam que se se poderia fazer do peixe seco “uma coisa gourmet”, outros acham que “isso de comer peixe seco é para quem foi criado assim” e outros ainda acham que “o problema é a ASAE não autorizar a seca tradicional e depois multar os restaurantes”.

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As tradições e o choque com as leis

E é aqui que esbarramos no problema: a necessidade de preservar uma arte ancestral, e amiga do ambiente, versus as questões da higiene e segurança alimentar.

Algarvio agarrado às tradições, José Centeno começou, com o pai, a secar bonitos e acabou a fazer experiências com queijo e butargas (neste caso, ovas de corvina), algumas delas do agrado de chefs de renome. Arranjou instalações, inventou equipamentos e, a dada altura, alguém de uma empresa de HACCP deu uma má notícia. “Disse-me que nunca poderia legalizar a minha empresa sem a utilização de conservantes e corantes. Ora, eu não estou para isso. Ou faço à moda tradicional ou não faço.”

Como a ASAE tem as costas largas, fizemos as perguntas a uma especialista da instituição, que, por sua vez, remeteu para Direcção Geral de Alimentação e Veterinária (DGVA), que é quem tem competência para licenciar unidades de secagem de peixe. E o que se conclui? Primeiro, que não é nem poderia ser proibido secar peixe em Portugal (basta pensar em bacalhau). Segundo, nenhuma lei impõe a obrigatoriedade de usar conservantes ou corantes. E, terceiro, sim, só pode comercializar peixe seco não confundir com a seca de peixe para autoconsumo quem tiver a sua actividade licenciada pela DGAV. Donde, o caso de José Centeno primo do actual governador do Banco de Portugal – é mais um dos típicos casos de desinformação que existe na indústria alimentar em Portugal.

Em declarações ao PÚBLICO, Maria Manuel Mendes, directora da área de Serviços e Segurança Alimentar da DGAV, é peremptória: “Secar peixe ao ar livre pode ser uma forma interessante de utilizar uma fonte energética natural e livre, mas a incapacidade de controlar com rigor a humidade é um risco para o desenvolvimento microbiológico, logo um risco para a saúde pública. E é por isso que as unidades licenciadas para a secagem de peixe utilizam secadores – e não estamos a falar de conservantes que não o sal , que garantem um produto isento de riscos.”

Assim sendo, a pergunta impõe-se: o caso da secagem de peixe ao sol na Nazaré, no Algarve ou na Costa Vicentina viola a lei? “Sim, esse processo não cumpre os requisitos legais, pelo facto de não haver protecção do peixe contra poeiras, contra pragas e contra o desenvolvimento microbiano.” Mas está à venda de todos, na rua e nos mercados. “Sim, sabemos disso, mas quando questionamos as peixeiras, o que elas nos dizem é que se trata de peixe para autoconsumo.”

Ao sublinhar que, todavia, nenhuma lei proíbe a secagem de peixe ao sol, Maria Manuel Mendes alerta para o facto de ser o operador económico quem deve garantir que o seu produto é seguro. “O controlo da humidade ao ar livre é um problema delicado, mas se um operador comprovar que essa técnica de secagem ao sol dá origem a um produto seguro, nada na lei impede de usar o sol como fonte de energia. Ele tem é de demonstrar que o seu produto é seguro para consumo.”

A responsável da DGVA entende que “as tradições devem ser mantidas e que o uso de uma fonte energética como o sol pode ser interessante no Verão”. E mais: “Nós, na DGVA, estamos sempre disponíveis para ajudar a resolver os problemas de quem queira desenvolver a sua actividade.”

Quem percebeu que a secagem de peixe com as receitas tradicionais pode ser um negócio interessante para valorização de toda a fileira de espécies populares é Luís Silvério, que está prestes a lançar no mercado carapau seco num túnel de ar quente (à semelhança do que acontece com o bacalhau). “Cresci com isto, pelo que gosto do peixe seco. Acho que devemos manter esse produto, que é nosso, mas feito com total higiene”, diz o empresário.

Significa isso que se corre o risco de perder a genuinidade do produto? “Não vejo como, porque, em termos de sabor, não há diferença entre o peixe seco ao ar livre e o peixe seco em túnel. Até porque a limpeza e a salmoura do peixe é feita com água do mar capturada e tratada por nós e não com água da torneira e sal. Depois, é amanhado, escalado e posto a secar nos túneis. Uma vez seco, vai para o congelador, o que faz que não tenhamos necessidade de usar conservantes. Sai para o mercado em cuvetes embaladas em atmosfera controlada. Mais natural do que isto não sei o que é.”

Talvez não fosse má ideia promover uma prova cega de carapaus secos em túneis industriais contra carapaus secos ao sol (fica desde já a promessa que, como se imagina, requer um júri à prova de bala). Atirar pela borda fora tradições que, ainda por cima, encaixam na perfeição no conceito da economia sustentável, é uma atitude de ignorância, mas tal não significa que se deva impedir a utilização de tecnologias recentes e seguras para atingir o mesmo fim: manter o sabor intenso do peixe seco. A ciência não tem de ser inimiga das tradições.

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Obrigar uma peixeira da Nazaré de 80 anos a criar uma unidade industrial é um exercício absurdo, assim como impedir melhorias de higiene no processo de secagem na praia só porque é muito turístico ver a alegria contagiante das nazarenas é um acto infantil.

O autor deste texto tem saudades dos chicharros secos ao sol pela avó (nos Açores não se fala de carapaus) e que se destinavam ao almoço dos domingos de caça ao coelho na ilha de São Miguel (no tempo em que havia coelhos). Com 10 ou 11 anos, a minha função no grupo de caçadores era, além de carregar o furão, preparar umas brasas de varas de loureiro verde que se cortavam com um podão. Fazer arder material húmido é uma trabalheira que nem vale a pena contar, mas que me valeu a dispensa de ir para os escuteiros. O esforço era recompensado com o perfume e o sabor dos chicharros – e também dos chouriços caseiros e também de umas cebolinhas novas com rama – tudo grelhado directamente nas brasas. Sobrar a cinza e estar a roer os chicharros à mão, ouvir as histórias de caça dos adultos e da arte dos cães e olhar para a Lagoa do Fogo é algo que penso eu hoje – daria material ficcional a um Hemingway ou ao nosso Francisco José Viegas.

A minha avó já não está cá para, com paciência de santa, vigiar as moscas enquanto os chicharros secavam ao sol, mas se eu hoje puder apanhar esse mesmo peixe curado de forma mais segura, meto-me rapidamente a caminho da Lagoa do Fogo.