Maria Manuel Valagão, guardiã da história oral da alimentação, mestre na conservação de peixe

Maria Manuel Valagão, a qualquer momento, surpreende com este ou aquele detalhe, mas, numa conversa sobre raias e carapaus, não esperávamos ouvi-la dizer que, nos anos 1970, levava peixe a um gigante da música portuguesa. “Às vezes, lembro-me da pescada arrepiada que levava no meu Mini para o Zeca [Afonso] e para a Zélia, em Setúbal, e comovo-me”.

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Daniel Rocha

A conversa decorria sobre a arte de secar peixe, as regras do HACCP, as histórias de mulheres e homens com 90 anos, a perda de memória colectiva, a incultura de quem toma decisões políticas na área da alimentação e as formas de transporte e embalamento do peixe seco, quando Maria Manuel Valagão, investigadora e ex-consultora da FAO, se sai com esta: “Às vezes lembro-me da pescada arrepiada que levava no meu Mini para o Zeca e para a Zélia, em Setúbal, e comovo-me”.

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A conversa decorria sobre a arte de secar peixe, as regras do HACCP, as histórias de mulheres e homens com 90 anos, a perda de memória colectiva, a incultura de quem toma decisões políticas na área da alimentação e as formas de transporte e embalamento do peixe seco, quando Maria Manuel Valagão, investigadora e ex-consultora da FAO, se sai com esta: “Às vezes lembro-me da pescada arrepiada que levava no meu Mini para o Zeca e para a Zélia, em Setúbal, e comovo-me”.

O Mini ajudou-nos a situar no tempo, mas ainda assim, a pergunta era inevitável. Desculpe, está a falar do Zeca, do Zeca Afonso? “Sim, sim, a Zélia é uma amiga de família e o pai, o senhor Agostinho – da Fuzeta – tinha um armazém de peixe seco, de onde enviava mercadoria para todo o país. Quando ia do Algarve para Lisboa, levava-lhes a Setúbal pescada arrepiada com uma pré-secagem, ainda gotejava, embrulhada em papel vegetal. O peixe em si, a história da sua conservação e aquele embrulho transformavam tudo aquilo num objecto requintado. E eu tinha tanto prazer em levar-lhes o peixe como levar um livro raro encontrado numa livraria qualquer. E note bem que, naquele tempo, um Mini não tinha ar condicionado, mas não me recordo de alguma vez o peixe ter cheirado mal no carro”

Maria Manuel Valagão devia ter o título de personalidade gastronómica nacional. Devia ser presença regular na comunicação social. E devia, ainda, ser consultora das autoridades oficiais para assuntos de alimentação. Porquê? Porque, sendo uma mulher de ciência, tem um domínio impressionante sobre a história e a antropologia e – mais importante – tem uma paixão inata pelas histórias de pescadores, agricultores e gente que nos dá de comer.

Bastam cinco minutos de conversa com esta algarvia para percebermos que se alimenta das pequenas histórias orais da História da alimentação de Portugal. Apresentem-lhe uma doceira de 80 anos que só tem as receitas guardadas de memória e Maria Manuel Valagão ficará dias à conversa com ela.

Doutorada em Ciências do Ambiente, Maria Manuel é autora de obras de referência na sociologia da alimentação, entre elas Vidas e Vozes – Do Mar e Do Peixe, em co-autoria com Nídia Braz e Vasco Célio (ed. Tinta da China). O capítulo Conservação Tradicional é uma tese que junta história, técnicas de cura (adequadas às diferentes espécies) e testemunhos.

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Os paneiros de secagem de carapau são ainda uma imagem de marca da praia da Nazaré.

“Deixar que tudo isso se perca é um acto de incultura”

A autora nada tem contra a inovação na área alimentar, mas defende ser “fundamental preservar as técnicas tradicionais de conservação de peixe, não apenas para efeitos de registo histórico. Já defendo isto há muitos anos: nós, no futuro, vamos precisar de saber secar produtos alimentares. E se isto é assim, a forma correcta de o fazer é valorizar e manter em actividade esta arte da secagem. Não é registá-la em livro; é mantê-la viva.”

Maria Manuel já entrevistou centenas de mulheres e homens, muitos analfabetos e com idades avançadas. E como cada espécie de peixe exige tratamento dedicado, a riqueza de informação que recolhe é enorme. “Deixar que tudo isso se perca é um erro tremendo e um acto de incultura. É como se, por termos acesso a sistemas de frio ou a sementes padronizadas por laboratórios, nos alegrássemos com a perda de conhecimento empírico.”

Em seu entender, “os portugueses – e os algarvios em particular – têm o ADN da secagem de peixe, no sentido em que sabem tratar de inúmeras espécies, sabem quais as alturas do ano ideais, sabem como prepará-las para receber o sal, sabem preparar salmouras, sabem que tempo de sol devem receber, sabem como dessalá-las e – claro – sabem como as apresentar à mesa. Já viu de que riqueza estamos a falar? Ou a perder?”

Ao comentar de passagem a questão da oxidação – vá lá, do ranço – que algumas espécies podem apresentar, Maria Manuel tem resposta pronta. “Sabe porque é que isso acontece? É porque alguém secou peixe quando ele estava gordo. Os peixes gordos são bons para secar, mas só quando estão magros. Se estão gordos dá-se o processo de rancificação. Não se esqueça de que o senhor Dâmaso [da fábrica Conservas Dâmaso, em Vila Real de Santo António] fazia a muxama com os atuns de tiragem [espécimes magros que saiam do Mediterrâneo após terem desovado].

Quem quiser aprender a secar peixe deve ler a obra Vidas e Vozes, onde, no capítulo da Conservação Tradicional, encontra uma dezena de testemunhos de homens e mulheres. É só um princípio, porque o que Maria Manuel Valagão deseja é que os consumidores procurem esta gente e consumam peixe seco. “Se as pessoas não se sentem úteis, os saberes perdem-se.”