No Chapitô, nós também somos Bauhaus
No centenário da fundação da Bauhaus, o Chapitô presta-lhe homenagem, assinalando os princípios, valores e métodos que ainda hoje partilha com aquela mítica escola de artes, fundada em Weimar, na Alemanha.
Bauhaus Viva – aqui, queremos nós dizer, que já nascemos bauhaus. Já somos uma consequência e uma réplica desse movimento e dessa globalização. Bauhaus no dia-a-dia e na essência de um projeto com 40 anos – dentro dos 100 anos que agora se celebram.
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Bauhaus Viva – aqui, queremos nós dizer, que já nascemos bauhaus. Já somos uma consequência e uma réplica desse movimento e dessa globalização. Bauhaus no dia-a-dia e na essência de um projeto com 40 anos – dentro dos 100 anos que agora se celebram.
Hoje, como ontem, tudo é urgente, tudo é precioso, tudo se liga a tudo. Na “Casa” Chapitô, como nas celebrações berlinenses da emergência da “Escola” Bauhaus, também nós estamos destinados ao lema: Re-pensar o mundo. E, também para nós, pensar é Desenhar. A começar pelo nosso projeto, de cujo código genético fazem parte características basilares da escola de artes que o arquiteto Walter Gropius fundou em Weimar, em 1919: radicalidade, o experimentalismo multifacetado, interdisciplinaridade, internacionalismo e a forma seguindo a função. A circularidade do Circo e a sua antropologia multidisciplinar facilitam esta contaminação.
Na verdade, o Chapitô, que muitos talvez conheçam apenas como “a casa das artes do circo”, é um espaço e um projeto transdisciplinar, com uma missão que extravasa em muito esse seu eixo nuclear. É uma plataforma geradora de desenvolvimento pessoal e social, transformando vidas em experiências estéticas, artísticas e humanistas. Como Gropius o defendeu, também nós estamos comprometidos em dar aplicações funcionais às artes. Estamos assim a ativar a sociedade através das artes, em sucessivos encadeamentos entre ação social, formação e artes, numa ecologia que promova a inclusão e o desenvolvimento pessoal, social e cultural.
O dia começa cedo e a noite acaba tarde na Casa Chapitô, instalada na Costa do Castelo, coração histórico de Lisboa. Neste espaço, com um longo passado feito de múltiplas camadas, desde Torre da Alfofa na idade média a prisão de mulheres e orfanato mais recentemente, trabalham hoje diariamente 120 colaboradores (artistas, operários do espectáculo, formadores, animadores, logísticos), mais as 60 pessoas que compõem a equipa de um restaurante e o grupo de produção e espectáculo que contribui para a economia social em que o Chapitô se sustenta – para levar a bom porto a intervenção social, a cultura e a educação que todos os dias acontece.
No núcleo central, sempre, as artes circenses, consideradas, tal como a arquitetura e o design Bauhaus, como um universo estético e uma enunciação ética sempre com ressonâncias filosóficas. Porque sabemos que a arte nunca é neutra e o Circo, enquanto forma de expressão inclusiva e universal, é um recurso inestimável nas suas potenciais estratégias inovadoras para as políticas formativas, socioeducativas e culturais. Experimentamo-lo, vivemo-lo, renovamo-lo todos os dias, nas múltiplas dimensões do projeto Chapitô, orientados, sempre, por um compromisso para com as pessoas e cumprindo uma missão de serviço público.
Cada centímetro conta. O Chapitô é uma grande casa, com muitos compartimentos, todos ligados entre si. Sempre em risco de ser labiríntico. A gestão deste espaço orgânico por natureza exige rigor e baseia-se na multifuncionalidade. Por exemplo, na mesma área, funcionam, durante o dia, o ATL Jovem “Porta Aberta” (uma biblioteca e uma sala de apoio ao estudo destinados a crianças e jovens dos 6 aos 25 anos) e também aulas ou reuniões numa sala contígua, e, à noite, aí entra em cena o Bartô, que durante a tarde foi biblioteca, um espaço de cultura aberto ao público, com uma programação multicultural e uma média de 20 mil espetadores por ano, acumulando ainda a função de galeria expositiva. A Tenda, por excelência espaço de aulas e treinos circenses, recebe ao fim da tarde cursos livres, workshops e ateliers em Artes Performativas abertos à comunidade. À noite, a Tenda é sala de espectáculos (com uma média de mais de cinco mil espetadores para 60 a 80 apresentações por ano). Dois pequenos ginásios são utilizados para aulas e treinos, mas também para a realização de workshops ou encontros. A esplanada, com uma privilegiada vista sobre a cidade, é cantina durante o dia, zona privilegiada de um restaurante com menu criterioso a partir das 19 horas. Cada centímetro do espaço do Chapitô responde, através do diálogo e da concertação contínua, às necessidades de cada um dos setores do projeto. Não se quer perder nada: nem espaço, nem tempo, nem energia. É fascinante aprender a olhar o Todo.
Quando foi inaugurada, em 1991, a Escola Profissional de Artes e Ofícios do Espetáculo (EPAOE), mais conhecida como a Escola de Circo do Chapitô, iniciou um percurso inovador, radical, diríamos mesmo, de integração das metodologias pedagógicas num quadro de ambições mais vasto. Sendo até hoje a grande referência de escola de circo existente em Portugal, e acompanhando 120 alunos por ano, a EPAOE propõe dois cursos de Artes do Espectáculo com duração de três anos (Curso de Interpretação e Animação Circenses e Curso de Cenografia, Figurinos e Adereços), estágio integrado e equivalência ao 12.º ano. O Chapitô cultiva os valores da integridade, da positividade e da equidade também através de uma determinante dinâmica transgeracional: aqui estão presentes as crianças, os jovens, os adultos e os seniores.
Um dos prospectos iniciais da escola Bauhaus anunciava: “A Arte e as pessoas devem formar uma única entidade. A Arte deve deixar de ser um luxo para poucos, mas antes ser apreciada e experienciada pelas massas.” No Chapitô, operamos quotidianamente esta máxima de sermos uma equipa de elite a trabalhar para o Povo, prosseguindo o projeto artístico e educativo integrado, gerido com eficiência, rigor e profissionalismo, implicado com as pessoas, com as comunidades, em particular com jovens em situações vulneráveis. Numa reordenação das artes performativas, o Circo mais contemporâneo avança para um campo concetual criando uma dramaturgia nos números artísticos a solo ou em grupo, de uma forma transdisciplinar e inclusiva. É nesta perspetiva que, em todas as áreas de intervenção do Chapitô, insistimos no experimentalismo multifacetado, potenciando – a partir da força socializadora das artes circenses – respostas inovadoras e com forte impacto, com o propósito de alargar a “criação de valor”, ou seja, de Capital social cultural.
Viva a Bauhaus – somos bauhaus/reciclamos bauhaus: na experimentação artesanal e artística como instrumento de pesquisa, ensino e aprendizagem nas artes plásticas sob inspiração de Oskar Schlemmer, Kandinsky, entre outros, e em Portugal através de Almada Negreiros, José de Guimarães, Jorge Martins, Júlio Pomar, Menez e Lagoa Henriques, mestre na Comunicação Visual. Somos bauhaus também na extensão universal do direito ao bem-estar e à infinita criatividade; na nossa Oficina de Reciclagem e Eco-Design, que funciona como estaleiro e espaço de criação artesanal; na inteligência orgânica e dinâmica com que gerimos todos os recursos de que dispomos ou na pedagogia com que operamos no ensino das artes e dos ofícios do mundo do espetáculo. Também nós perseguimos o espectáculo total, como arte de síntese de muitas artes. Hoje, no Circo, convivem quer a dimensão mais tradicional das exigentíssimas e virtuosas especialidades circenses, quer as novas dramaturgias e ambiências cénicas, criando espectáculos intensos marcados pela contemporaneidade artística mais radical, oriunda da tradicional arte do circo com mestres como Popov, Luciano, Zeca Elizabete, na área do humor e do riso, e Ariane Mnouchkine e Jérôme Savary na área do teatro em França. Tudo isto no que diz respeito à pujança e diversidade da inspiração artística que se faz sentir no circo contemporâneo.
Internacionalismo, radicalidade, experimentalismo, transdisciplinaridade, uma missão artística e social são princípios que concretizamos. No Chapitô Casa/Bauhaus, vamos percebendo e aprendendo, e transmitindo, e Re-desenhando, pela vivência, que a arte poderá estar em qualquer espaço cénico: numa Pista, no Palco, na Rua, nas Fábricas e nos Hospitais, mas também no processo formativo, na reinvenção, no treino, na escuta, na solidariedade, na inclusão, na mundanidade, no sentido cosmopolita (moramos no sítio do fado) e até no perfume das aromáticas que crescem nos nossos canteiros suspensos. Também no pôr-do-sol com o Tejo em fundo, no olhar prometedor das nossas crianças, nas vidas que se emancipam, no humor, nos risos e gargalhadas, numa fruição que cria amizades corpo-a-corpo e face-a-face, nas exigências constantes, proporcionando uma qualidade na vida e nas obras e nos produtos, e no diálogo entre todos, com simplicidade, Re-desenhamos. Aqui, no projeto Chapitô, como na Bauhaus, temos em montagem e em progresso uma fábrica de sonhos e illusio que se materializa... Bauhaus para sempre! Parabéns aos 100 anos! E nós, no Chapitô – os estagiários dessa caminhada de artes e educação, há 40 anos, na recriação constante da Vida!
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico