Chimamanda Ngozi Adichie critica moralismo dos jovens nas redes sociais
Partindo de experiências pessoais com duas pessoas que a atacaram online, a escritora e activista nigeriana publicou no seu site um ensaio em que descreve uma geração a quem sobra em hipocrisia o que lhe falta em compaixão.
Chama-se It’s Obscene [É Obsceno] e é o grito de alerta da escritora e feminista Chimamanda Ngozi Adichie contra o farisaísmo dos jovens nas redes sociais, “tão receosos de poderem ter opiniões erradas que roubaram a si próprios a oportunidade de pensar, e de apreender e de crescer”.
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Chama-se It’s Obscene [É Obsceno] e é o grito de alerta da escritora e feminista Chimamanda Ngozi Adichie contra o farisaísmo dos jovens nas redes sociais, “tão receosos de poderem ter opiniões erradas que roubaram a si próprios a oportunidade de pensar, e de apreender e de crescer”.
Publicado terça-feira à noite no seu site, o texto, que se apresenta como “uma reflexão sincera em três partes”, foi tão procurado nas horas seguintes que a sua página na Internet não aguentou o tráfego e chegou a ir temporariamente abaixo, relata o jornal britânico The Guardian.
Nas duas primeiras partes do texto, a autora do romance Meio Sol Amarelo e do longo ensaio Todos Devemos Ser Feministas conta a sua experiência pessoal com dois autores - uma pessoa que escreve e que é não-binária e uma autora que se identifica como mulher - que frequentaram a sua oficina de escrita criativa em Lagos e que mais tarde a atacaram repetidamente nas redes sociais, com um deles a rotulá-la de “criminosa”.
Chimamanda Adichie não nomeia as pessoas em causa, mas explica que os ataques e insultos começaram depois de ter dito numa entrevista televisiva, em 2017, que “as mulheres transgénero são mulheres transgénero”, sugerindo que, tendo nascido com os privilégios que o mundo concede aos homens, a sua experiência de género seria distinta. Uma declaração que foi lida como implicando que estas não seriam verdadeiras mulheres, interpretação que Adichie refutou, assegurando que obviamente achava que as mulheres transgénero eram mulheres, mas que entendia que, sem prejuízo de nos “mantermos totalmente inclusivos, devemos ser capazes de reconhecer diferenças”. E lembrava que “a premissa da inclusão é a diferença”.
Uma das autoras frequentou a casa da escritora e tornou-se sua amiga, e mesmo depois de a insultar nas redes sociais, mandava-lhe emails, que Adichie transcreve, a tentar reatar a relação. E quando não obteve resposta, voltou a atacá-la publicamente.
O outro caso é o de uma pessoa cuja escrita Adichie elogia e que diz ter ajudado a publicar o seu romance de estreia, e que, depois da referida entrevista televisiva, a rotulou publicamente de “criminosa”, apelou nas redes sociais a que deixasse de ser convidada para falar em público e escreveu no Twitter, a 5 de Janeiro passado: “Acredito que haja outras pessoas que pegarão em machetes [facalhões] para nos proteger das agressões que transfóbicas como Adichie e [J.K.] Rowling tentam perpetuar. Eu, contudo, estarei no meu jardim com borboletas, tentando descobrir como fazer amizade com os corvos da vizinhança”.
Esta mesma pessoa citava-a como mentora na capa do seu livro, o que levou Chimamanda Adichie a exigir à editora que retirasse essa menção, o que teve como resultado acusações nas redes sociais de que estaria a sabotar-lhe a carreira. Embora o ensaio Its’ Obscene nunca a identifique, a pessoa reagiu nas redes sociais quando Adiche exigiu que o seu nome fosse retirado do livro, de modo que é público que se trata de Akwaeke Emezi, de nacionalidade nigeriana e cujo romance Freshwater foi entusiasticamente recebido pela crítica e recebeu vários prémios. Tornou-se mesmo a primeira obra de uma pessoa não-binária transgénero a ser nomeada para o prestigiado prémio britânico Women's Prize for Fiction.
Se os dois terços iniciais do texto de Adichie podem ser vistos, consoante a perspectiva, como um modo de tentar repor a verdade ou como um ajuste de contas, a terceira é uma reflexão mais genérica sobre a relação dos jovens com as redes sociais.
“Há gente muito experiente nas redes sociais que sufoca de moralismo mas a quem falta compaixão, que consegue discorrer com fluidez no Twitter sobre a bondade, mas que é incapaz de mostrar genuína bondade”, escreve a romancista. “Pessoas que dizem amar a literatura – as confusas histórias da nossa humanidade –, mas que ao mesmo tempo têm obsessões monomaníacas com qualquer que seja a ortodoxia ideológica dominante. Pessoas que vos pedem que denunciem os vossos amigos por motivos irrisórios de modo a manterem o lugar na eleita classe puritana”, descreve ainda Chimamanda Adichie.
E a escritora termina o seu ensaio com um parágrafo (aqui transcrito em tradução apressada) que faz um balanço duro do que considera ser uma espécie de processo de desumanização em curso. “Falei com gente jovem que me diz se sente aterrorizada por twittar seja o que for, e que lê e relê cada tweet porque receia ser atacada pelo seu próprio grupo. A presunção de boa-fé está morta. O que importa não é a bondade, mas a aparência de bondade. Já não somos seres humanos. Somos agora anjos competindo para nos expulsarmos uns aos outros da condição angelical. Deus nos ajude. É obsceno.”