O riso de António Torrado
António Torrado era tudo menos sisudo – aliás, quem o conhece saberá que o seu sorriso malandro o comprova. Tive a extraordinária sorte de o ter conhecido, há uns anos. E disse-lhe, sem rodeios, que era o meu escritor preferido enquanto crescia. Ao que ele perguntou, a rir: “Então e agora, já não sou?”.
António Torrado não era simplesmente um narrador de histórias para crianças. Era um conversador. Além de as contar e relatar com fantasia inteligente (duas coisas deveras difíceis de dosear e equilibrar com mestria), ria enquanto no-las contava. Falava connosco. Essa proximidade e familiaridade do contador de histórias com o leitor miúdo (ou graúdo) cintilava em cada frase. Sem pejo e sem vaidade. Era evidente que, enquanto nos contava cada história, também se divertia a fazê-lo – e assim nos agarrava na mão e na imaginação para entrarmos logo no que nos que queria dizer e tagarelar.
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António Torrado não era simplesmente um narrador de histórias para crianças. Era um conversador. Além de as contar e relatar com fantasia inteligente (duas coisas deveras difíceis de dosear e equilibrar com mestria), ria enquanto no-las contava. Falava connosco. Essa proximidade e familiaridade do contador de histórias com o leitor miúdo (ou graúdo) cintilava em cada frase. Sem pejo e sem vaidade. Era evidente que, enquanto nos contava cada história, também se divertia a fazê-lo – e assim nos agarrava na mão e na imaginação para entrarmos logo no que nos que queria dizer e tagarelar.
António Torrado foi um dos grandes responsáveis por eu ter tido uma infância feliz (além da minha família próxima, claro, escuso de dizer). António Torrado e Maria Alberta Menéres, acrescento. Dois contadores de histórias que nos levavam pela mão na alegria de ouvir uma história, guiando o olhar inteligente e curioso da criança para outras palavras, outros horizontes, outros sonhos. Mas sem serem sisudos! Nada disso.
António Torrado era tudo menos sisudo – aliás, quem o conhece saberá que o seu sorriso malandro o comprova. Sempre sorrindo e rindo, naquele seu ar jocoso de quem sabe mais do que aquilo que diz, e sempre com uma ternura no olhar para com quem falava. Sei de tudo isto porque tive a extraordinária sorte de o ter conhecido, há uns anos. E disse-lhe, sem rodeios, que era o meu escritor preferido enquanto crescia. Ao que ele perguntou, a rir: “Então e agora, já não sou?”. Naturalmente que fiquei engasgada, e balbuciei um sim meio envergonhado, mas cheio de sinceridade. É que, verdade seja dita, nunca paramos de crescer. E as histórias que lemos na nossa meninice bem merecem leituras renovadas, visto que nos dão outra substância das coisas. E mais, são verdadeiros manuais didácticos sobre a sintaxe e a eufonia das frases e dos textos.
Muito se aprende ao ler e reler as histórias da nossa infância. Refiro-me, claro, ao caso de António Torrado, que engenhosamente tece uma história com os fios do diálogo e da sabedoria popular, numa voz amiga e igual para com o leitor. Também Maria Alberta Menéres era mestre no contar e recontar. São poucas vezes considerados estes escritores, sobretudo na literatura infantil portuguesa, tão exuberante e variada, mas que recorre quase sempre aos mesmos exemplos para se fazer valer. O belíssimo e inesquecível livro Histórias em Ponto de Contar, escrito por ambos, sobre desenhos de Amadeo de Souza-Cardoso (da Assírio & Alvim) é uma obra que deve ser estudada e divulgada, merece ser lida e partilhada por muitos miúdos e graúdos. É que, além da história em si, estes autores convidavam ou acompanhavam os melhores ilustradores, desenhadores e artistas para colaborarem nos seus livros. O livro infantil nunca é só um livro. É uma prenda! É um acontecimento!
Não sei se acontece a muitos, mas muitas vezes revisito as histórias da minha meninice. Tenho aqui, a meu lado, alguns livros do António Torrado, como Sapateiro Remendeiro, Muito Trabalho e Pouco Dinheiro, o clássico Macaco do Rabo Cortado, o Dom Pimpão Saramacotão e o Seu Criado Pimpim, Dez Dedos de Conversa ou O Mercador de Coisa Nenhuma. Alguns têm as páginas gastas e as lombadas meio torcidas, em edições com mais de 30 anos, muitas vezes lidas e relidas. Meia dúzia seleccionada de entre centenas de histórias, tenham sido elas adaptadas de contos ou lendas tradicionais portuguesas (como já noutro século nos haviam mostrado Teófilo Braga ou Consiglieri Pedroso nas suas colectâneas), tenham vindo elas do grandioso reino da imaginação do autor, ou sejam ainda colaborações com outros autores.
Conhecer a obra de António Torrado é abrir a arca da omnipotente imaginação e criatividade infantil que, movidas pela curiosidade do mundo e pelos divertidos jogos de linguagem, nos preenchem de alegria e sonho. Sem atoleimar nem ridiculizar nenhum leitor. António Torrado era assim. Era grandioso e generoso no contar, porque falava e ria connosco. Em vez de se ajoelhar para falar com uma criança, levantava-a consigo para que conseguisse ver o horizonte de riso e de palavras que uma história podia mostrar.