Os malefícios de um provincianismo mental acrítico e fascinado pelo novo
Nem a TLEBS, com as suas fastidiosas e aberrantes descrições, nem o AO 90, com os “seus erros, imprecisões e incoerências”, propiciam uma reflexão sobre a Língua.
O síndroma provinciano compreende, pelo menos, três sintomas flagrantes: o entusiasmo e admiração pelos grandes meios e pelas grandes cidades; o entusiasmo e admiração pelo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental superior, a incapacidade de ironia.
Fernando Pessoa
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O síndroma provinciano compreende, pelo menos, três sintomas flagrantes: o entusiasmo e admiração pelos grandes meios e pelas grandes cidades; o entusiasmo e admiração pelo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental superior, a incapacidade de ironia.
Fernando Pessoa
Regresso a um tema que me é caro e sobre o qual me tenho repetido porquanto, a meu ver, permanece o absurdo que o caracteriza, bem como a doença de que padece e à qual se refere a epígrafe escolhida. Refiro-me à Reforma curricular de 2003, cujo espírito e metodologias se mantêm porquanto “o princípio da cura está na consciência da doença, o da verdade no conhecimento do erro”, o que ainda não aconteceu.
Não posso deixar de confessar que o presente texto nasceu do livro do Professor Jorge Calado (IST), Limites da Ciência (2.ª edição, 2021), da Fundação Francisco Manuel dos Santos, “redigido com o Acordo Ortográfico de 1945”, conforme se lê em nota. Será imprescindível transcrever as palavras do autor, a propósito de “A Língua e a linguagem”, para evidenciar a relação com a Reforma de 2003 acima referida e entusiasticamente anunciada. Eis a transcrição, longa, mas imperiosa: “Alguns cientistas, isolados nas suas torres de marfim, pensam que, se ninguém os entende, fazem figura de seres supremamente inteligentes. A verdade é que a construção de uma linguagem hermética, entendida por poucos e benéfica para nenhum, não passa, muitas vezes, de mais um sintoma de impreparação. A nudez da ignorância disfarçada com o manto espesso do artifício. […] A snobeira do falar difícil e pseudocientífico encontrou terreno fértil nas humanidades. […] que dizer da relativamente recente (2004) substituição da velha Nomenclatura Gramatical Portuguesa dos artigos, substantivos, adjectivos, verbos, pronomes, advérbios, preposições, etc., pela pretensiosamente científica Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário (TLEBS), entretanto suspensa? Uma salgalhada de variáveis, determinantes, auxiliares aspectuais e modais e preciosidades como ‘Um Nome tem um funcionamento não contável quando necessita de um suporte (discretizador ou enumerador) que o discretize ou enumere.’ Ciência, isto?”
Haverá que esclarecer o Professor Jorge Calado que a TLEBS não foi suspensa, apenas “corrigida” (imagine-se o desconforto do vocábulo para os “cientistas” que a trabalharam) continuando activa nos seus “disparates”, em programas e exames de Português. Na tentativa de apagar a polémica e o desastre intelectual que representou, a TLEBS transfigurou-se em Dicionário Terminológico, sendo seu obstinado mentor o Professor João Costa, de há longa data Secretário de Estado da Educação, e obviamente um fervoroso impulsionador da Reforma de 2003 da qual se salienta, no que à disciplina de Português diz respeito, a apologia de textos funcionais, o menosprezo pela Literatura, mormente pela Poesia, o amaldiçoamento de aulas expositivas, bem como do uso da memória e a pseudo-novidade da “Reflexão sobre a Língua” que a TLEBS proporcionaria, segundo “explicaram”, em acções de formação. E acções de formação porquê? Pela constatação da impossibilidade de os professores compreenderem as “inovadoras” descrições terminológicas. Eu própria assisti apenas a uma sessão, não estando inscrita, e foi o suficiente. Perante uma dúvida, a formadora repetiu vezes sem conta a mesma explicação, com o mesmo vocabulário, aberrante e impenetrável, apontando no final, e ostensivamente, a minha “a impreparação”.
Realce-se o facto de a Reforma de 2003, afogada em teorias de educação já ultrapassadas e de nefastos efeitos,[1] querer impor-se como o que de melhor já existia na Europa comunitária, sobretudo em grandes países, de que o Reino Unido foi destacado como exemplo. Sim, o mesmo país em que os professores de Inglês já lamentavam que Shakespeare fosse ultrapassado por biografias de jogadores de futebol, “mais em conformidade com os interesses dos alunos”, a mesma justificação inovadora que ouvimos em 2002 em relação a Vieira, e muitos outros escritores, e que se perpetua. Um vocabulário específico, oscilando repetidamente entre “novo”, “inovação”, “inovador”, “moderno”, “modernizar”, “progresso”, “funcional” e “recreativo”, ostracizando o “velho” e o “antigo”, preenchia relatórios e programas.
Em sinal de abertura, convidou-se à crítica, mas a porta fechou-se a tudo o que se opunha ao previamente estabelecido, não sem uma ou outra perseguição intelectual, pondo-se em causa “a modernidade” que significa toda a abertura à discussão. Aliás, este comportamento “opaco” não se evidenciou apenas com a Reforma de 2003 e a TLEBS (2004), ele manifesta-se em inúmeras situações porque caracteriza um tipo de política arrogante e indiferente à discussão e ao Saber. Nesse sentido, realço o novo aeroporto, situação que recentemente pôs em destaque o comportamento grosseiro do presidente da ANA, José Luís Arnaut, face à defesa da localização do aeroporto em Alcochete pelo Eng. Carlos Matias Ramos (IST); a destruição da serra de Carnaxide, organizada com a cumplicidade de imobiliárias e câmaras (Amadora, Oeiras e Sintra) e que se intensifica perante a passividade de quem deveria intervir, nomeadamente o Ministério do Ambiente; a exploração de lítio, contrariada por movimentos cívicos e autarcas e em que mais uma vez o Ministro do Ambiente vem garantir “todo o rigor ambiental”, o mesmo rigor que temos vindo a conhecer de há muito e que, por vezes, até abdica de estudos de impacte ambiental ou os entrega a pessoas da sua confiança, apontadas como “independentes”; a imposição abusiva do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90), contra a qual se insurgiu o professor João Costa, enquanto membro da Associação Portuguesa de Linguística (2005), mas eram outros tempos, e já sabemos que o charme do poder facilita o esquecimento e a palavra dada. Nestas situações “opacas” sobressaem decisões marcadas pela “admiração por si próprios” e por ideias de “grandeza”, escondendo, quantas vezes, interesses perversamente sublinhados em nome do “bem público”, do “desenvolvimento da economia” e outras ideias afins.
No que diz respeito ao AO90, continua a salientar-se o argumento da globalização, da internacionalização da língua portuguesa, como um resultado a vir do referido acordo, esquecidos que estão da História. No entanto, é epidémica a mania do inglês ou a recusa de, no estrangeiro, falar em português. Ouve-se um Primeiro-Ministro discursar em espanhol (aconteceu com António Costa e José Sócrates, e certamente outros), a maioria das imobiliárias publicita em inglês, sendo no turismo essa prática exaustiva e lembrar-se-ão do “Allgarve”; a Câmara de Oeiras também se modernizou e inchou de prazer com a brilhante designação de “Oeiras Valley”, pomposamente gravada em todo o município e em Idanha surge o programa “Idanha Green Valley”; a Universidade Nova de Lisboa, constituída por faculdades, institutos e escolas, preza igualmente o inglês, e não é a única, observando-se que a Faculdade de Ciências Médicas traja agora com Nova Medical School, a de Economia, Nova School of Business and Economics, a de Direito, Nova School of Law, a de Ciências e Tecnologia, Nova School of Science and Technology, o Instituto Superior de Estatística e Gestão de Informação, Nova Information Management School. Na Comunicação Social proliferam “mídia”, “briefing”, “stakeholders” e tantos outros exemplos que cada um recordará; a Task Force aí está também e até o programa da Câmara Municipal de Lisboa, de apoio às pessoas em situação de sem-abrigo, se intitula “Housing First”, conforme ouvi na Rádio pública. Os exemplos são infinitos e todos marcados pelo caricato e por esse espírito provinciano que Pessoa tão pormenorizadamente analisou e descreveu.
As contradições entre o que se diz e o que se faz, no âmbito do delineado no AO90, traduzem-se ainda naqueles que o aplicam, orgulhosa ou resignadamente, imunes à convivência com o absurdo. Na verdade, há situações a raiar o ridículo e daí compreender-se o mal-estar de alguns em pensar escrever, por exemplo, “espetador”, optando por “espectador”, mas sem qualquer problema depois em juntar, no mesmo texto, “espetáculo” e “espectador”. A editora Relógio D’Água introduziu uma adenda com palavras que não respeitariam o AO 90, seguramente movida pelo ridículo que a nova roupagem traduz, e aí se encontra o exemplo de “espetador” que será grafado “espectador”; num manual de Matemática do 2.º ano, encontrei “Se um espectador chegar às 15:40, que atuações é que não conseguirá ver?” e na alínea seguinte, “A que horas termina o espetáculo?”, um flagrante exemplo de como se convida as crianças do 1.º ciclo a reflectir sobre a língua, conforme desejava a TLEBS. E ainda a propósito do novo “espetador”, surpreendeu-me também que Rui Tavares, cronista do jornal Público, sendo tão avidamente favorável ao AO90, e não defendendo qualquer correcção às suas incongruências e aos seus erros, tenha optado por “espectadores”, e por duas vezes, na sua crónica “Quem tem medo de Destemidas?” (26.06.2020): (“[…] a série de animação que foi suspensa da RTP após queixas de espectadores […] e “[…] entre muitos dos espectadores que se queixaram […]”.
Qualquer professor sabe que os alunos se interrogam sobre algumas situações do AO que propiciam equívocos, o que toda a ortografia tende a dispensar. E eles existem neste acordo, nomeadamente com a supressão dos acentos em “pára” e em “pêlo”, mantendo-se, no entanto, em “pôr” para não se confundir com “por.” Como professora recusei-me a cumprir este AO e agora como avó não fui capaz de confundir a minha neta (2.º ano) em duas dúvidas que me apresentou, estando a escrever uma história sobre a sua gata Mia. A dado momento, perguntou: “Pêlo leva acento, não é?” E eu respondi-lhe afirmativamente, justificando que assim não se confundia com “pelo”. Mais adiante: “Pára, também?” E eu de novo respondi que sim. E de imediato, a minha neta, numa breve reflexão sobre a língua e a sua lógica: “pois, porque senão era para!”
Nem a TLEBS, com as suas fastidiosas e aberrantes descrições, nem o AO 90, com os “seus erros, imprecisões e incoerências”, propiciam uma reflexão sobre a Língua. Duas aventuras idênticas no seu provincianismo mental, obviamente acrítico e fascinado pelo novo!
[1] Hannah Arendt, La crise de la culture. Gallimard, folio-essais, 1989.