Contra a aplicação arbitrária das medidas do governo para a investigação
Pedimos propostas concretas por parte do governo para que se assuma uma estratégia abrangente de contratação que não passe por oportunidades a termo sem possibilidade de integração na carreira.
As mais recentes medidas avançadas pelo governo com o intuito de regularizar vínculos existentes e integrar investigadores e docentes precários revelaram-se insuficientes e discricionárias.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
As mais recentes medidas avançadas pelo governo com o intuito de regularizar vínculos existentes e integrar investigadores e docentes precários revelaram-se insuficientes e discricionárias.
A Lei 57/2017 veio definir um novo regime de contratação com o fim de estimular o emprego científico. A abertura de procedimentos concursais a respeito de uma Norma Transitória (NT) permitiu que um número razoável de investigadores e docentes fossem contratados pelas instituições de ensino superior nas quais já se encontravam (a esmagadora maioria dos casos) ou até por outras, conforme os objetivos estratégicos das mesmas. Porém, a aplicação desta lei, e em particular da NT, também deu origem a muitas dúvidas e injustiças.
Desde cedo que se colocaram dúvidas quanto à caraterização da NT enquanto medida adequada e/ou suficiente para colmatar o enorme défice de percursos de carreira dignos e estruturados para a investigação e docência, em Portugal. Por um lado, o governo nunca se comprometeu a integrar qualquer investigador abrangido pela NT uma vez findos os três a seis anos do contrato transitório. Por outro lado, com ou sem compromisso por parte do governo, os critérios de aplicação da NT sempre se configuraram de extrema arbitrariedade – apenas os investigadores com mais de três anos de experiência pós-doutoral e que estivessem abrangidos por algum tipo de contrato (a prazo) direta ou indiretamente financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) no momento exato da publicação da Lei 57/2017 viriam a ter a possibilidade de integrar essa “comunidade transitória” de beneficiários. Assim, esta janela legal excluiu um conjunto de investigadores, nomeadamente os últimos investigadores a serem “contratados” com bolsas de pós-doutoramento da FCT e antes da extinção de tais concursos. Uma arbitrariedade incompreensível à luz de uma suposta estratégia política inclusiva e integradora.
No que concerne à implementação propriamente dita da NT e aos respetivos concursos, também se levantaram dúvidas. Num artigo publicado em 5 de agosto de 2018, questionou-se a falta de um mapeamento sistemático dos casos de incumprimento da lei, juntando as razões pelas quais algumas instituições decidiram não abrir esses mesmos concursos e/ou contratar investigadores que não aqueles para os quais a NT se dirigia. Convém realçar que nem todos os investigadores teoricamente abrangidos pela NT foram contratados, sendo infelizmente impossível saber o número exato dos investigadores que se encontram nesta situação. A NT permitiu ainda a contratação de investigadores com menos de três anos de experiência pós-doutoral, caso o investigador para o qual o concurso fosse aberto desistisse. E muitas instituições aproveitaram um concurso que foi pensado para integrar investigadores para, em alternativa, contratar docentes, sem que, no entanto, se tenha resolvido o grave problema de docentes convidados e precários.
O incumprimento da lei pelas instituições de ensino superior tem demonstrado a ampla margem de atuação na simulação da resolução do problema estrutural na academia: a falta de oportunidades reais de carreira. Não realizar um contrato com um investigador por este não ser financiado direta ou indiretamente pela FCT, ou por apenas falhar três anos por um dia é incompreensível. Tudo dependeu e continua a depender, em última análise, das opções discricionárias das instituições de ensino superior. É importante salientar ainda que o não cumprimento da NT assim como a forma como a lei foi estruturada levou a muitas desigualdades e situações de incumprimento.
Tomando em consideração estes factos, é possível concluir que a NT não trouxe estabilidade efetiva aos investigadores que dela beneficiaram nem tão pouco foi concebida de forma a oferecer, pelo menos, alguma continuidade na sua aplicação. O critério estritamente temporal da NT carece desde o início de qualquer indício quanto à sua possível e posterior reaplicação (por exemplo, sempre que algum novo investigador doutorado alcançasse os três anos de experiência pós-doutoral). Desta forma, excluiu investigadores de forma arbitrária tanto durante a aplicação da NT como depois. Assim, existe uma “geração” de investigadores que não foi abrangida pela NT e que mostra de forma gritante a discricionariedade com a qual este governo tem optado por atuar.
A realidade é desanimadora. Atualmente existem muitos investigadores com significativa experiência pós-doutoral no desemprego ou sem qualquer alternativa de futuro em Portugal uma vez terminados os seus atuais contratos precários. Estas várias situações de injustiça somam-se à precariedade, gerando sentimentos de desespero, impotência, práticas de emigração forçada e abandono da profissão, provocando a cada ano que passa uma saída de investigadores do meio académico, demonstrando a incapacidade de investimento do governo e uma certa miopia para com a forma como o dinheiro público é utilizado para financiar bolsas ou contratos de curto prazo.
A inadequação das medidas tomadas durante os últimos anos é evidente. Os investigadores contemplados pela NT e que foram contratados no âmbito da mesma tiveram uma oportunidade absolutamente isolada no tempo, arbitrariamente atribuída, e que não foi proporcionada à maioria remanescente. O mínimo a exigir era cumprir com a NT com todos os investigadores abrangidos e ainda com aqueles que permanecem com bolsas, tanto diretamente financiadas pela FCT como por outras fontes de financiamento. A isto soma-se o facto de que as contratações existentes no âmbito do Concurso Estímulo ao Emprego Científico Individual (CEEC) e dos projetos financiados pela FCT são claramente insuficientes, chegando a excluir muitos investigadores de excelência, desbaratando assim o potencial que a sua atividade traria à comunidade científica internacional e à sociedade portuguesa. No caso do CEEC, destacam-se ainda casos em que a contratação de docentes, em muitos casos já integrados na carreira, prejudica ainda mais a entrada na carreira de investigadores.
Face ao exposto, pedimos propostas concretas por parte do governo para que se assuma uma estratégia abrangente de contratação que não passe por oportunidades a termo sem possibilidade de integração na carreira. Para tal, será fundamental que fique definitivamente clara a disponibilidade política do governo e a respetiva capacidade financeira, em sede de Orçamento do Estado, para integrar os investigadores doutorados que existem no país numa carreira de investigação estável, digna e com contratos efetivos. Consideramos que o governo deve responsabilizar-se ainda pela estabilização das carreiras dos investigadores que, por razões distintas, inclusive por incumprimento por parte das instituições, não foram abrangidos pela NT ou que, tendo sido abrangidos, permanecem na incerteza. Será também crucial clarificar definitivamente a possível autonomia desta carreira em relação à carreira de docente, salvaguardando a necessária equiparação.
É tempo que o governo garanta critérios de justiça na regularização dos vínculos existentes e integração de investigadores e docentes. E é tempo de agir para contrastar o desmantelamento do sistema académico português.
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico
Ana Cristina Rebola Pereira (investigadora pós-doc ARDITI, Universidade da Madeira);
Ana Estevens (investigadora contratada de projeto, Centro de Estudos Geográficos, IGOT, Universidade de Lisboa);
Ana Sofia Ferreira (investigadora pós-doc FCT, Instituto de História Contemporânea, Universidade NOVA de Lisboa);
Carla Sophia Brazão Andrade Sousa Alves (investigadora pós-doc ARDITI, Universidade da Madeira; *filiação aplicável à Norma Transitória);
Caterina Cucinotta (investigadora pós-doc FCT, Instituto de História Contemporânea, Universidade NOVA de Lisboa);
Davide Masoero (investigador FCT, Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa);
Eunice Castro Seixas (investigadora contratada pelo projeto CRiCity, SOCIUS/CSG, ISEG, Universidade de Lisboa);
Gianfranco Ferraro (bolseiro FCT de doutoramento, Universidade Aberta, já investigador pós-doc FCT em Filosofia);
João Afonso Baptista (investigador pós-doc, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa);
Jorge Augusto Machado Pereira (investigador pós-doc, Centro de Química da Madeira, Universidade da Madeira);
José Carlos Costa (investigador pós-doc FCT, Faculdade de Ciências da Universidade do Porto);
Maria José Lobo Antunes (investigadora pós-doc, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa);
Maria Valente (investigadora pós-doc FCT, William James Center for Research);
Marisa C. Gaspar (investigadora pós-doc com Bolsa Individual FCT SOCIUS/CSG - Investigação em Ciências Sociais e Gestão, ISEG-Universidade de Lisboa);
Pedro Figueiredo Neto (investigador pós-doc, Instituto de Ciências Sociais- Universidade de Lisboa);
Roberto Falanga (investigador pós-doc, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa);
Vanda Nulita Gomes Pereira (investigadora pós-doc ARDITI, Universidade da Madeira);
Virgínia Cruz Fernandes (investigadora pós-doc FCT, REQUIMTE/LAQV - Instituto Superior de Engenharia do Porto, Instituto Politécnico do Porto);
E com o apoio da Rede dos Investigadores contra a Precariedade Científica.