Esqueleto agrilhoado confirma escravatura na Inglaterra do período romano

Restos mortais de um homem com grilhões nos tornozelos, e que terá vivido durante a ocupação romana, foram encontrados por operários no centro de Inglaterra.

Foto

Trabalhadores da construção civil descobriram em Rutland, no centro de Inglaterra, um esqueleto com grilhões de ferro nos tornozelos que pode ser a primeira prova material da prática da escravatura na Grã-Bretanha do período da ocupação romana.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Trabalhadores da construção civil descobriram em Rutland, no centro de Inglaterra, um esqueleto com grilhões de ferro nos tornozelos que pode ser a primeira prova material da prática da escravatura na Grã-Bretanha do período da ocupação romana.

O achado deu-se quando os operários construíam uma estufa numa casa da povoação de Great Casterton. Chamada ao local, a polícia submeteu os ossos à datação por radiocarbono e chegou a um intervalo entre os anos 226 e 427 da era cristã, compatível com o período em que o centro da Grã-Bretanha era a província de Britânia, criada em 43 e só definitivamente dissolvida já no início do século V, após os bretões terem expulsado a administração civil romana. 

Arqueólogos do Museum of London Archeology, conhecido por Mola, investigaram a macabra descoberta, e de acordo com as conclusões que divulgaram esta segunda-feira na publicação académica Britannia, o esqueleto de Great Casterton será uma descoberta com “relevância internacional”. Não porque alguém duvidasse seriamente da existência de escravatura na Inglaterra romana, mas porque nunca se tinham até hoje descoberto provas materiais que a confirmassem.

O exame do esqueleto, que terá pertencido a um escravo com cerca de 30 anos, indica que o corpo deve ter sido simplesmente atirado para uma vala e coberto de terra. Um dos arqueólogos envolvidos, Chris Chinnock, explicou ao jornal The Guardian que o esqueleto está numa posição estranha, ligeiramente voltado para o seu lado direito e com parte do corpo soerguido por uma inclinação do terreno. O facto de ter sido descoberto um cemitério romano a apenas 60 metros do local parece sugerir, argumenta o arqueólogo, a deliberação de não lhe proporcionar uma sepultura condigna. 

“Ter a oportunidade de estudar o corpo de uma pessoa que muito provavelmente foi um escravo é realmente importante”, disse ao Guardian Michael Marshall, um especialista do Mola em achados arqueológicos. Mas é também “uma descoberta desesperadamente sinistra”, contrapõe Chinnock, “que nos obriga a colocar questões que habitualmente não colocamos”.

“A escravatura era corrente no Império Romano e a sua prática está descrita em fontes escritas da época”, explica o texto que o site do Mola dedica a esta descoberta, acrescentando que é difícil, no entanto, “identificar pessoas escravizadas” nas escavações arqueológicas, já que, sendo os grilhões um dos muito poucos artefactos directamente associados à escravatura, só muito raramente são encontrados junto a restos humanos. E o esqueleto de Great Casterton, sublinha o museu, “é o primeiro homem enterrado com grilhões de ferro trancáveis identificado como tendo vivido na Inglaterra romana”.

Michael Marshall não duvida de que o achado é “extraordinariamente invulgar”, mas previne que dificilmente viremos a conhecer as circunstâncias em que este homem foi enterrado. “Pode ser que o morto tenha provocado a ira de outras pessoas, ou pode ser que a gente que o enterrou fosse tirânica e terrível – não conseguimos realmente compreender as dimensões morais [envolvidas]”.

Desconforto, sofrimento e estigma

A equipa de arqueólogos, conta o Guardian, colocou diversas hipóteses, incluindo a de que os grilhões possam ter sido colocados após a morte do homem, para o humilhar ou para o marcar como um criminoso para a vida eterna. Os poucos esqueletos agrilhoados até hoje encontrados noutros países morreram geralmente em resultado de desastres naturais e não foram sepultados. É também o facto de este esqueleto ter sido deliberadamente enterrado que o torna um caso excepcional.

Chris Chinnock, cuja especialidade é a análise de ossos antigos, calcula que o homem tivesse entre 26 e 35 anos e acredita que a vida que levou exigiu bastante do seu físico. Uma lesão óssea encontrada numa das pernas, que já tinha sarado quando o homem morreu, pode ser consequência de uma queda ou de um golpe, mas também “o resultado de uma vida preenchida com excessiva actividade física”, disse o especialista ao Guardian.

Já a causa da morte não pôde ser apurada, assim como não será possível identificar o homem, mas a equipa de arqueólogos sublinha que “o conjunto de provas constitui o caso mais convincente de restos mortais de um escravo romano até hoje descoberto em Inglaterra”.

Michael Marshall reconhece que “várias questões permanecem sem resposta”, mas não a óbvia brutalidade a que este homem foi submetido. “Para portadores vivos, estes grilhões eram simultaneamente uma forma de encarceramento e um método de punição, uma fonte de desconforto, sofrimento e estigma que deixaria marcas mesmo após a sua remoção”.