O homem e os tanques
De Hong-Kong e Macau, os únicos pontos de território sob influência chinesa, onde ano após ano se continuavam a comemorar os aniversários do movimento de Tiananmen, chega-nos agora a notícia de que estão proibidas as vigílias nesta data.
A imagem jamais se apagará do nosso imaginário: um homem solitário a enfrentar os tanques militares chineses, na imensidão da Praça da Paz Celestial, em Beijing.
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A imagem jamais se apagará do nosso imaginário: um homem solitário a enfrentar os tanques militares chineses, na imensidão da Praça da Paz Celestial, em Beijing.
Não lhe conhecemos ao certo a identidade nem o destino, como também não conseguimos saber com exatidão quantos tombaram naquele massacre, mas a imagem é, por si só, um ícone da coragem e da luta pela Liberdade. Decorridos 32 anos, a verdade é que muitos dos acontecimentos daqueles dias foram-se apagando da nossa memória. Contudo, quando pensamos em Tiananmen, somos invariavelmente tomados por essa memória.
Desde essa altura até aos dias de hoje muito mudou e nem sempre para melhor. A China foi trilhando o seu caminho de grande potência mundial, venceu o desafio da evolução tecnológica, conquistou os mercados internacionais e a sua influência geopolítica expandiu-se, sobretudo em áreas geográficas abandonadas ou esquecidas por outros atores globais. Surgiu uma classe média que viaja, pode colocar os filhos a estudar no estrangeiro, o Governo anuncia ter erradicado da pobreza e Xin Jinping cuida da manutenção do regime com mão de ferro.
Os (cinicamente) denominados campos de reeducação de Xinjiang mostram que não há espaço para veleidades. O trabalho forçado, a esterilização e o aborto forçados não deixam dúvidas quanto ao tratamento das minorias étnicas e religiosas, bem como de quem se atreve a desafiar o regime.
A prisão de Ilham Totti, laureado pelo Parlamento Europeu com o prémio Sakharov, é um elucidativo exemplo.
No Tibete, a repressão, o isolamento e a brutalidade no tratamento continuam a ditar o martírio dos que restam.
De Hong-Kong e Macau, os únicos pontos de território sob influência chinesa, onde ano após ano se continuavam a comemorar os aniversários do movimento de Tiananmen, chega-nos agora a notícia de que estão proibidas as vigílias nesta data.
Como em muitos outros pontos do globo, a pandemia serve para aprofundar os ataques aos direitos fundamentais e para comprimir ainda mais a liberdade de expressão e manifestação.
Depois dos acontecimentos em Hong Kong e da imposição da Lei de Segurança Nacional aos territórios sob administração chinesa, não restavam dúvidas do caminho que se iniciava. Beijing não tolera veleidades.
É evidente que a Covid-19 cria constrangimentos até nas mais liberais democracias, mas o baixíssimo número de casos em Macau e Hong Kong não deixam dúvidas de que a pandemia é o álibi perfeito e o motivo útil para algo mais profundo - reprimir qualquer traço de resistência, apagar Tiananmen, apagar tudo o que não cabe na cartilha do regime, apagar e não permitir repetições de qualquer devaneio crítico do regime. Apagar, se possível, a própria memória.
As instruções emitidas em março pela Comissão Executiva da TDM (a televisão de Macau), a proibir a divulgação de notícias ou opiniões desfavoráveis ao Governo Central, constituíram um indício importante, impossível de ser desvalorizado, a que agora se junta a proibição da evocação do 4 de junho de 1989.
Em Macau, os sinais, embora menos evidentes do que em Hong Kong, não deixam dúvidas sobre o caminho de supressão das liberdades (garantidas pela Lei Básica, pela aplicação do princípio “um país, dois sistemas”).
Esteve bem Augusto Santos Silva quando, em linguagem diplomática, lembrou que a Lei Básica estará em vigor até 2049. Mas seremos capazes de mais do que isso? Temos de ser, em memória dos que tombaram em Tiananmen e dos inegociáveis valores da Liberdade e da Democracia. Não podemos voltar a deixar um homem sozinho diante dos tanques.