Coração Lento é um livro construído sob a órbita de uma certa negatividade. A qual, no entanto, é amiúde questionada pela afirmação de impulsos vários em sinal contrário, surgidos na esfera do vital. O que implica, ao longo do mais recente livro de Frederico Pedreira, que à consideração dos elementos constituintes de um pólo se sucedam apelações do outro lado da argumentação. Há, por isso, um encadeamento de avanços e recuos, entre anúncios de luz e exibições de obscuridade. De resto, o elemento visual é uma das matrizes deste livro. Palavras como “olhar”, “olho[s]”, mas também “retina”, além de vocábulos correlatos, repetem-se numa cadência frequente e deliberada. Desde (pelo menos) os pré-socráticos que se tem glosado a prevalência da visão sobre todos os outros sentidos: “os olhos são, de facto, testemunhas mais precisas” (Fragmentos Contextualizados, Heraclito, IN-CM, 2005, trad. Alexandre Costa). E é, precisamente, sobretudo por via da visão que os poemas estabelecem o xadrez de opostos, os cambiantes, o ciclo da afirmação e do negado — tão admiravelmente patentes em Coração Lento. Uma disposição que se pode já notar no primeiro poema do livro. Esta composição de sinais opostos, conjunto de proposições construídas por inviabilidades, falhas, lacunas, revela, desde logo, o seu engenho na forma de tematizar o empobrecimento da paisagem, dos modos de vida, dos lastros conviviais, da perda — “A praia impossível onde te vi enfim/ descalça e feliz como poucos teriam ousado/– pétala tremendo muito de frio ao de leve/ e de uma fome que não vem neste século nem no seguinte./ Contaram-nos histórias, essas ondas íngremes/ que o povo quase todo dizia ter escalado,/ talvez dom os peixes apertados na boca.” (p.13) A citação (longa, de toda a segunda estância do poema), como se perceberá da leitura de Coração Lento, constitui a antecipação de uma súmula. O reforço de sentido trazido pela presença contígua de “não” e “nem”, mas também a expressão da impossibilidade, da fome, sublinham a negação, que o poema reforçará, no que ficou por citar, com a “brevidade”, o “insolúvel”, o “informe”. Ainda neste poema inicial se começa a delinear a importância dos lugares, assinalada, ao longo do livro, por uma ruralidade agreste. Mas a escassez traduzida nos poemas, o desamparo e a privação que atravessam Coração Lento, não se fundem num cenário de relativismo, nem tão-pouco se inscrevem nas redes de um projecto demagógico de segundas e terceiras intenções. Nem panfletarismo, nem decorativismo, são, portanto óbices a estes versos. A categoria do espaço é antes um dos constituintes da aproximação à realidade que esta poesia promove. Sem esquematismos, nem a facilidade de uma identificação excessivamente sentimental, ou manipuladora.
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Coração Lento é um livro construído sob a órbita de uma certa negatividade. A qual, no entanto, é amiúde questionada pela afirmação de impulsos vários em sinal contrário, surgidos na esfera do vital. O que implica, ao longo do mais recente livro de Frederico Pedreira, que à consideração dos elementos constituintes de um pólo se sucedam apelações do outro lado da argumentação. Há, por isso, um encadeamento de avanços e recuos, entre anúncios de luz e exibições de obscuridade. De resto, o elemento visual é uma das matrizes deste livro. Palavras como “olhar”, “olho[s]”, mas também “retina”, além de vocábulos correlatos, repetem-se numa cadência frequente e deliberada. Desde (pelo menos) os pré-socráticos que se tem glosado a prevalência da visão sobre todos os outros sentidos: “os olhos são, de facto, testemunhas mais precisas” (Fragmentos Contextualizados, Heraclito, IN-CM, 2005, trad. Alexandre Costa). E é, precisamente, sobretudo por via da visão que os poemas estabelecem o xadrez de opostos, os cambiantes, o ciclo da afirmação e do negado — tão admiravelmente patentes em Coração Lento. Uma disposição que se pode já notar no primeiro poema do livro. Esta composição de sinais opostos, conjunto de proposições construídas por inviabilidades, falhas, lacunas, revela, desde logo, o seu engenho na forma de tematizar o empobrecimento da paisagem, dos modos de vida, dos lastros conviviais, da perda — “A praia impossível onde te vi enfim/ descalça e feliz como poucos teriam ousado/– pétala tremendo muito de frio ao de leve/ e de uma fome que não vem neste século nem no seguinte./ Contaram-nos histórias, essas ondas íngremes/ que o povo quase todo dizia ter escalado,/ talvez dom os peixes apertados na boca.” (p.13) A citação (longa, de toda a segunda estância do poema), como se perceberá da leitura de Coração Lento, constitui a antecipação de uma súmula. O reforço de sentido trazido pela presença contígua de “não” e “nem”, mas também a expressão da impossibilidade, da fome, sublinham a negação, que o poema reforçará, no que ficou por citar, com a “brevidade”, o “insolúvel”, o “informe”. Ainda neste poema inicial se começa a delinear a importância dos lugares, assinalada, ao longo do livro, por uma ruralidade agreste. Mas a escassez traduzida nos poemas, o desamparo e a privação que atravessam Coração Lento, não se fundem num cenário de relativismo, nem tão-pouco se inscrevem nas redes de um projecto demagógico de segundas e terceiras intenções. Nem panfletarismo, nem decorativismo, são, portanto óbices a estes versos. A categoria do espaço é antes um dos constituintes da aproximação à realidade que esta poesia promove. Sem esquematismos, nem a facilidade de uma identificação excessivamente sentimental, ou manipuladora.