Por toda a minha vida
É curioso que de tudo o que poderia contar de Nova Iorque nessa viagem dupla é em Las Vegas que me fixo para relatar aqui o momento de prazer absoluto que vivi.
“Tenho muitas saudades de viajar”, diz quem se queixa deste tempo de cativeiro. É uma frase que soma privilégios, mas legítima para quem se habituou a sair do (seu) país em busca de mais mundo, mesmo que esse mundo possa estar aqui perto. Eu tenho saudades de regressar. Regressar a casa depois de uma viagem longa e onde a cidade nos recebe como se fosse a primeira vez que a víssemos. Regressar a Lisboa de madrugada com o Marquês dormente e ver as árvores da avenida é uma espécie de poema involuntário. Tenho saudades de ler a cidade nessa volta.
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“Tenho muitas saudades de viajar”, diz quem se queixa deste tempo de cativeiro. É uma frase que soma privilégios, mas legítima para quem se habituou a sair do (seu) país em busca de mais mundo, mesmo que esse mundo possa estar aqui perto. Eu tenho saudades de regressar. Regressar a casa depois de uma viagem longa e onde a cidade nos recebe como se fosse a primeira vez que a víssemos. Regressar a Lisboa de madrugada com o Marquês dormente e ver as árvores da avenida é uma espécie de poema involuntário. Tenho saudades de ler a cidade nessa volta.
Da última vez que viajei, visitei Nova Iorque e Las Vegas. Melhor: visitei Nova Iorque, depois Las Vegas e voltei a Nova Iorque para mais uns dias. Foi um regresso antes de o ser. Voltámos ao Inverno da 5.ª Avenida depois da manga encurtada pelo deserto que se enfeitiça com slots e personagens que duvidamos que alguma vez tenham existido. Vagueiam num lugar onde o prazer foi construído como se um manto de relva artificial cobrisse tudo.
Las Vegas foi durante décadas um filme que vi até já me ser insuportável aguentar a dor das suas personagens: um escritor que quer beber até (não) aguentar e uma prostituta com um coração ainda maior do que a sua beleza. Quando os dois se encontram ali num semáforo, uma luz intermitente acende-se entre Sera e Ben. O resto alguns saberão. O filme é de Mike Figgis. Leaving Las Vegas era cinema, mas esse cinema estava longe da cidade. O néon não chega para haver magia.
É curioso que de tudo o que poderia contar de Nova Iorque nessa viagem dupla é em Las Vegas que me fixo para relatar aqui o momento de prazer absoluto que vivi: tínhamos uma cerimónia longa e formal em que éramos convidados e num piscar de olho (também se chama a isso amor ou cumplicidade) decidimos voltar para o hotel.
Da janela do quarto avistávamos uma paisagem caótica entre as luzes incandescentes e o betão que ligava casinos, superfícies de consumos imediatos, restaurantes aonde ninguém pensava voltar e um cartaz gigante que anunciava um concerto dos Fleetwood Mac num dia impossível, quando já estivesse de regresso a outra cidade. Digressões diferentes mesmo para quem ouve a mesma canção.
O quarto de hotel era amplo, banheira com vista sobre a cidade (aquelas que nos encantam e onde depois percebemos que nem vamos mergulhar) e a tal janela gigante que nos projectava o cinema que afinal ainda havia ali. O cinema espontâneo da selva dos Elvis e do barulho maquinal dos casinos sem horas: é mais fácil a inconsciência do que perdemos, quando perdemos a noção das horas. Tudo isso era Las Vegas, mas eu queria voltar ao quarto e sair da cerimónia que se estenderia por mais horas entre aplausos e discursos.
Apanhámos um táxi: percurso breve confirmando o efémero de tudo ali. Subimos ao nosso quarto. Abrimos a cortina gigante. Era um fim de tarde com o sol posto para lá do cartaz que me lembrava que não estaria ali a ver o concerto que por um triz, um triz, não seria o concerto da minha vida (e talvez não fosse).
Que música se ouve em Las Vegas? Nós escolhemos Elis Regina. Uma chusma de canções a embaterem no vidro gigante, contra os néons, contra todas as probabilidades de estarmos ali a ouvir aquela voz.
Pedimos um vinho e uma sanduíche. O vinho chamava-se Justin e ao abri-lo soltámos um riso de surpresa que se anunciava na rolha: “Just open up”, como quem diz: não tens muito para pensar. Abre e aprecia o momento, o vinho, a vida. Ficámos ali a acabar a garrafa numa noite que começava. Havia a Elis, as luzes e a possibilidade de apreciar um momento. E esse momento valeu pela vida toda.
Voltámos a Nova Iorque. Cruzámos as avenidas. Voltámos a Lisboa e avistámos a avenida nesse Marquês ainda a balbuciar os primeiros sons da manhã. No instante em que regressei, trazia em mim esse prazer somado de vários momentos vividos, mas aquele simples do fim de tarde a rir-me de uma garrafa num quarto de hotel valeu uma viagem.
Acabo com esse cliché que a vida não vai contrariar: os prazeres mais simples são os que perduram. (Lá ao fundo, na minha memória, Elis ainda canta Por toda a minha vida).