Movimento suave do amor

A obrigação e a rotina, essas arqui-inimigas do prazer, esmagam-nos, fazem-se inquilinas no nosso calendário e ditadoras dos nossos dias. E é aí que as visitas rápidas da deusa do prazer se tornam ainda mais substanciais.

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Kaur Martin/Unsplash

Segundo a mitologia grega, Eros, deus do amor e da paixão, e Psique, deusa da alma, apaixonaram-se e tiveram uma filha: Hedone, deusa do prazer. Hedone é, aliás, a palavra grega para prazer.

A verdade faz-nos mais fortes

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Segundo a mitologia grega, Eros, deus do amor e da paixão, e Psique, deusa da alma, apaixonaram-se e tiveram uma filha: Hedone, deusa do prazer. Hedone é, aliás, a palavra grega para prazer.

O prazer nasce então dessa combinação da paixão com a alma, dessa ligação corpo/espírito. Talvez a deusa Hedone achasse que estava fadada para os grandes momentos: o sexo, a comida, a arte e a literatura. E estava. O que ela não imaginava era do quanto seria convocada para banalidades e de como teria de nos cumprimentar diariamente em doses minúsculas. Ela esperava uma maior grandiosidade da vida, nos museus, a acompanhar quem se maravilha com os Rembrandts, nas camas com quem atinge orgasmos, nos repastos com quem se delicia com uma lagosta à Thermidor, nos concertos de música clássica com quem se extasia com Bach. Mas ninguém a tinha preparado para as minúcias a que estava também destinada. Ela sempre gostou de visitar recém-nascidos a ronronar ao colo das mães depois de mamar ou de participar em degustações de vinho. Ela não demorou a aceitar que teria de marcar presença em cafunés, massagens e cigarradas a seguir ao café. Foi paciente quando percebeu que muito daquilo a que ela se propunha era considerado pela Igreja um pecado mortal. Sentiu como uma afronta que condenassem a Preguiça, a Luxúria e a Gula, mas constatou que essas interdições não reduziam a sua prestação, por isso não contestou. Ficou zangada com Freud quando ele explicou que há prazer na dor e na autodestruição, achou aquilo uma grande confusão que só lhe traria chatices, mas acabou por se resignar.

No entanto, quando percebeu que a frequência do seu trabalho aumentava e a intensidade só diminuía, quando viu a sua função reduzida a ninharias quotidianas incompreensíveis, achou de mais.

Eu convoco-a constantemente por insignificâncias. Pelo cheiro de bombas de gasolina, por barulhos de isqueiros a acender, por sons de tesouras dos cabeleireiros. Por copas de pinheiros-mansos enfileiradas a parecerem almofadas fofas, pela sensação dos lençóis frios esticados, pelo plano desmarcado, pelo despertador adiado.

Imagino-a a sentir-se frustrada com a humanidade e a ansiar por momentos arrebatadores. Imagino-a pasmada com os viciados no ASMR, essa nova tendência de pessoas que adormecem a ouvir unhas de gel a bater em superfícies, vozes a sussurrar e escovas a passar nos cabelos. Imagino-a enojada com quem adora espremer borbulhas ou intrigada com quem tem prazer no exercício físico, intriga essa que eu partilho.

Imagino-a cheia de saudades de Roma e dos seus excessos, da corte do Luís XIV, ou dos grupos de estudantes de Erasmus em Amsterdão.

A verdade é que nem sempre temos tempo ou condições para usufruir dos grandes prazeres. A obrigação e a rotina, essas arqui-inimigas do prazer, esmagam-nos, fazem-se inquilinas no nosso calendário e ditadoras dos nossos dias. E é aí que as visitas rápidas da deusa do prazer se tornam ainda mais substanciais. Ela é a ninja que se intromete no meio dos nossos compromissos, a peça que se encaixa tipo Tetris nos nossos afazeres (e por falar em Tetris, o prazer de encaixar as peças do Tetris!). É o respiro no meio da apneia burocrática. É a responsável pela nossa sanidade. A imperial gelada depois do dia de trabalho, o podcast no carro entre reuniões, o final dos Cornetos, o pão no molho das amêijoas. Ela é o rebentar das bolhas dos invólucros de plástico depois de um dia cansativo de mudanças. É a caixa dos queques preferidos que a nossa avó recebe, é o Meme que nos faz sorrir e o refrão que nos faz cantar.

Os hedonistas, que consideram o prazer o bem supremo da vida humana, descrevem-no como “o movimento suave do amor”, por oposição à dor, que seria o “movimento áspero do amor” (agora não, Freud!). Este movimento suave do amor acompanha-nos, e, ainda bem, pela vida fora. O que seria de nós sem esse suavizador dos dias, sem esse amortecedor de angústias, sem esse escape dos aborrecimentos.

O prazer parece mesmo essa cola que une corpo e espírito, paixão e alma. É fácil de reconhecer, mesmo que dure uma fração de segundo, porque é aquilo que nos arrebata e apazigua em simultâneo. É a trinca de chocolate com sabor a imortalidade ou o mergulho no mar que parece um encontro com uma deusa do Olimpo.