Samuel Martins Coelho: “A música é uma consequência, o meu propósito é estar consciente, experimentar”
Violinista, compositor e multi-instrumentista, Samuel Martins Coelho dá a música ao manifesto e lança Cura, um novo álbum instrumental. Em entrevista ao P3, o músico expôs as entranhas do mais recente trabalho a solo e falou sobre saúde mental.
É composta de “música honesta” e autobiográfica a ainda recente carreira a solo de Samuel Martins Coelho. Depois de Partita Para Violino Solo, álbum com que se estreou em nome próprio em 2019, o músico apresenta agora um novo trabalho. Nas palavras de Samuel, Cura, lançado a 9 de Abril pela Lovers & Lollypops, é a continuação e antítese do primeiro disco. “O primeiro descreve momentos meus, era de dentro para fora. Este já é uma coisa aberta onde tudo circula”, explica em entrevista ao P3.
Os discos contam uma história muito pessoal. Em 2018, Samuel participou no evento da Capital Europeia da Cultura, em Malta. “Na altura, tinha escrito uma banda sonora para um filme, era uma pressão muito grande, tinha um coro, tinha bandas, tinha muita coisa”. Depois de cinco noites sem dormir — que inspiraram o tema Insónia do primeiro álbum —, o músico procurou ajuda psicológica e foi diagnosticado com perturbação de pânico e ansiedade. Pouco tempo depois, começou o confinamento. Num processo criativo que define como “selvagem e anárquico”, Samuel usou a música como “veículo” para se expressar e exteriorizar as emoções e os episódios que viveu. “Já estava farto de sofrer e então decidi: porque não fazê-lo com o violino? Porque era o meu maior medo, eu sou multi-instrumentista, toco muita coisa, mas o violino é o único que eu levo a sério.”
Pegou no seu primeiro violino aos 13 anos, estudou na Academia Nacional Superior de Orquestra, em Lisboa, e começou a carreira no mundo da música clássica que, percebe hoje, “não é propriamente uma identidade” a que se sente “ligado musicalmente” — misturando as sonoridades do violino com a guitarra e a electrónica, está a compor um percurso e a descobrir uma “linguagem” própria.
“Eu estou a tentar fazer uma coisa que sempre fui ensinado a não fazer: aceitar o erro. Aprendi a não me levar a sério. Eu não sou perfeito e se as pessoas estão à procura dessa perfeição, não é comigo”, conta o músico de 40 anos, relembrando a pressão de tocar numa orquestra. “Eu tinha um ego muito grande e foi difícil assumir isso, o meu maior inimigo era eu próprio.”
Um propósito
Anos depois do diagnóstico e de um caminho percorrido, Cura é o resultado de todas as experiências que teve até aqui “a nível de terapia, psicoterapia, descoberta” — “há um enorme preconceito sobre estas questões”. “Muita gente não se apercebe que é o estilo de vida e o stress diário durante décadas que leva a momentos de ruptura.” A perspectiva mudou, mas a música — causa e cura de uma maneira de ver a vida que veio a mudar — mantém-se presente na existência do violinista. “A música é uma consequência, o meu propósito é estar consciente, usufruir, experimentar.”
Durante este período, Samuel praticou meditação, o que inspirou o tema Terra. “Um dos exercícios era meditação consciente, estar por exemplo a olhar para uma árvore, mas não fazer juízos de valor, tentar absorver [o que via], e daí nasce Terra”, revela.
Também a música Pele nasce de um pensamento, da percepção de que a pele, “além de ser uma cor, é uma identidade, é um livro, é um carimbo, é onde estão as cicatrizes, no sentido mais figurado tu vestes determinadas peles dependendo do contexto social, mudas-te, alteras-te para ser mais aceite, ou não.” O tema, gravado camada a camada com a utilização do loop, sonoriza esta perspectiva “visual” da música.
Apesar de assumir abertamente as circunstâncias que o trouxeram até aqui, compor um álbum nunca foi um objectivo. “Quando comecei a compor o disco só me queria safar, só queria agarrar a corda que eu tinha no fundo do poço e subir. Deu um disco, é uma consequência, eu nunca quis fazer um disco.”
Lançado um segundo álbum, são já muitas as vidas que tocou com a sua história e algumas que ficaram amigas até hoje. “Depois dos concertos vinha sempre gente ter comigo e de repente eu tinha ali adultos, menos adultos, a falarem-me na primeira pessoa sobre o que estão a passar na vida”, relembra. Sobre a questão da saúde mental, o músico é claro: “Falo, falarei e artisticamente deu-me um propósito”.
A apresentar Cura, um disco que o “liga mais ao que o rodeia”, Samuel Martins Coelho tem já data marcada no Linha Musical 400, no Porto, este sábado, 29 de Maio, e no festival Estalo!, em Guimarães, a 6 de Junho.
Texto editado por Maria Paula Barreiros