Burnout de género
Na última semana não houve um dia em que não tenha recebido um piropo durante uma caminhada.
Há anos que tenho o hábito de fazer caminhadas diárias. E por volta desta altura em que o tempo começa a ficar mais quente, as caminhadas tendem a ser mais longas, e, no geral, mais agradáveis. Digo “no geral” porque há um fenómeno que, como o calor, é sazonal, e do qual não sou grande fã: os piropos. Não me interpretem mal, eles andam aí o ano todo; só se tornam mais intensos e mais frequentes quando deixamos de vestir sweatshirts e casacos (não que seja preciso estarmos de crop-top e mini-saia; basta mostrarmos um bocadinho do braço).
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Há anos que tenho o hábito de fazer caminhadas diárias. E por volta desta altura em que o tempo começa a ficar mais quente, as caminhadas tendem a ser mais longas, e, no geral, mais agradáveis. Digo “no geral” porque há um fenómeno que, como o calor, é sazonal, e do qual não sou grande fã: os piropos. Não me interpretem mal, eles andam aí o ano todo; só se tornam mais intensos e mais frequentes quando deixamos de vestir sweatshirts e casacos (não que seja preciso estarmos de crop-top e mini-saia; basta mostrarmos um bocadinho do braço).
Na última semana não houve um dia em que não tenha recebido um piropo durante uma caminhada. Costumam vir de dentro de um carro em andamento, e eu costumo estar de auscultadores, por isso raramente ouço o que têm para me dizer. Mas vejo sempre o sorriso, o beijo atirado para o ar, ou, às vezes, a cara furiosa com que olham para mim, como se fosse uma afronta eu ter braços e andar com eles na rua.
Quando são carros de empresas, como é muitas vezes o caso, ocorre-me sempre fotografar a matrícula e reportar. Acabo por nunca o fazer. Não por medo, não por achar que não vai dar em nada, mas porque não estou para me chatear. Se a última semana, em que ouvi piropos todos os dias, serve como exemplo, tenho que pensar em quantas semanas assim tive desde a pré-adolescência, e quantas ainda vou ter até ser considerada demasiado velha para ser desrespeitada na rua, e então calcular quantas queixas tenho que fazer… Cansa menos aceitar os piropos e seguir em frente. Não é assim tão mau.
E assim vamos arquivando estas agressões diárias, convencendo-nos a nós próprias de que não nos incomoda, que não custa, que não é assim tão chato ter que mudar de roupa três vezes antes de ganhar coragem para sair de casa, que podia ser pior, podia sempre ser pior. E vai crescendo, claro, o sentimento de culpa, porque uma feminista que se preze não se deixa ficar, se nos calarmos nada muda, e esse homem que não denunciaste hoje amanhã vai estar a estragar o dia de uma outra mulher… Estão familiarizadas com o monólogo interno, certo?
Estou cansada. Quero falar de outras coisas. Os piropos e o assédio foram a minha primeira lição na disciplina “feminismo” – já a sei de cor. Quero avançar para temas mais complexos, mais interessantes e, sobretudo, mais urgentes. Para dar lugar a esses temas, despejo sempre que posso estas questões “menores” na cave do meu cérebro. Acontece que essa cave já começa a ficar sem espaço.