“Still Life”, uma homenagem de todas as mulheres que são filhas a todos os homens que são pais
O meu lugar de vítima do 27 de Maio tornou-se um lugar de culpa por não ter concretizado o que me propus: dignificar o nome do meu pai. Se o pedido de desculpa [do Presidente de Angola] tirou pedras da minha mochila? Sim, tirou muitas.
No final de Março deste ano projectei-me um espaço de diálogo e desconfinamento solidário com recurso às redes sociais, particularmente ao Instagram. Resultado da necessidade da partilha, este espaço esboçado em Março funcionou de abrigo a um processo de reconstrução pessoal colectivamente partilhada. A pandemia, o confinamento e o isolamento social em Portugal acumularam-se nesta minha mochila que desde o dia 1 da minha vida venho carregando cheia de pedras. É nela que o peso do 27 de Maio de 1977 se faz sentir, um peso que os anos a somar silêncios se misturam com dor de uma filha que não sente o chão de Luanda desde 2018. Angola que tantas vezes serviu para me salvar tornou-se ainda mais distante no dia 13 de Março de 2020, data em que foi decretado o primeiro confinamento geral em Portugal.
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No final de Março deste ano projectei-me um espaço de diálogo e desconfinamento solidário com recurso às redes sociais, particularmente ao Instagram. Resultado da necessidade da partilha, este espaço esboçado em Março funcionou de abrigo a um processo de reconstrução pessoal colectivamente partilhada. A pandemia, o confinamento e o isolamento social em Portugal acumularam-se nesta minha mochila que desde o dia 1 da minha vida venho carregando cheia de pedras. É nela que o peso do 27 de Maio de 1977 se faz sentir, um peso que os anos a somar silêncios se misturam com dor de uma filha que não sente o chão de Luanda desde 2018. Angola que tantas vezes serviu para me salvar tornou-se ainda mais distante no dia 13 de Março de 2020, data em que foi decretado o primeiro confinamento geral em Portugal.
Anualmente, sempre que o calendário marca 9 de Abril, dia em que o meu pai Adelino António dos Santos (Betinho) nasceu, sinto a dor de um Maio que se aproxima, que nunca sai do calendário. E assim, no passado mês Abril fui pensando mais um Maio de pedras, de lágrimas, de luto ao qual se acrescentei outras pedras ainda, esculpidas a partir daquele 24 de Novembro de 2018, no Hotel Ritz, em Lisboa, por ocasião da Visita de Estado do General João Lourenço, Presidente da República de Angola, a terra que me viu nascer e testemunha do nascimento de todos os meus. Chamar-se-ia “Pátria” se pudesse dar título àquela sequência de imagens que, como um filme onde eu não queria estar, somente ouvir, um pedido de desculpa, passou a dormir comigo de dedo indicador apontado e a apontar-me. Nas 24 horas que se seguiram àquele dia recebi todo o tipo de insultos, uns vindos de estranhos desconhecidos, outros de estranhamente conhecidos, familiares e amigos.
44 anos versados sobre o 27 de Maio em Angola, à minha maneira organizei, para ter lugar esta semana, uma homenagem a todos os homens que são pais. A homenagem foi pensada em Abril, muito antes do pedido de desculpas que na passada 4.ª feira, 26 de Maio, marcou a agenda política em Angola.
Em Abril, no meu luto pedi ajuda a um dos meus mestres, o cidadão de Portugal e do Mundo Mendo Castro Henriques, Professor na Universidade Católica Portuguesa de Lisboa, para me guiar neste meu silêncio que dói, falar comigo, ser uma voz a dizer-me que o Humano existe, a ajudar-me a compreender o que ia na cabeça do meu pai e seus camaradas. Juntos planeámos a semana para, partindo de um perfil aberto no Instagram, analisar o pensamento Marx e Engels, as origens do Comunismo, compreender melhor o universo do socialismo utópico que tomou conta do pensamento e acção política dos jovens que, com o meu pai Betinho, em 1977 protagonizaram 27 de Maio em Angola.
A conversa ficou dividida em duas partes. Na 2.ª feira, dia 24 de Maio, às 21h30, num Live no Instagram transmitido a partir do perfil aberto @agencia.upf e integrado na rubrica ReCriar Ibidem Idem Item Etc, espaço completamente dedicado à História do Pensamento e à Cultura, a viagem fez-se pelo pensamento Marx e Engels. Da União Soviética à descolonização, o Professor Mendo Castro Henriques foi a minha bengala numa revisão da importância dos escritos desta dupla de intelectuais e do seu impacto na Europa e no Mundo.
Numa segunda parte, integrada na rubrica ReActivar Activistas por um Melhor Mundo Possível, emitida 5.ª feira, 27 de Maio, às 21h30, a tematização da importância do pensamento de Marx e Engels e da ideologia Comunismo conduziu-me a mim, e a todos os que comigo viajam apoiando-me nas paragens em que a mochila se torna mais pesada, pelo universo de Leopold Sédar Senghor, do socialismo utópico de Nito Alves, esclarecendo a importância dos escritos de Marx no Pensamento Independentista dos Países Africanos.
Na 6.ª feira, dia 28 de Maio, deixei reservado um lugar para pousar o meu coração a ReVer O Olhar das Imagens de Margarida Dias, prestigiada fotógrafa que conta no seu curriculum com cerca de duas dezenas de exposições individuais e outras mais colectivas, estando representada em colecções públicas e privadas, quer no estrangeiro quer em Portugal.
Juntas revisitaremos “Still Life”, uma colecção de fotografias de naturezas mortas que ela dedicou ao seu falecido pai e que eu lhe pedi emprestadas para dedicar ao meu pai. No fundo, desde Abril que sabia que Maio serviria de homenagem por todas as mulheres que são filhas a todos os homens que são seus pais.
E estava eu entre a frieza das pedras e o peso da mochila quando, na 4.ª feira, dia 26 de Maio, fui avisada de que o Presidente da República deste país que é a nossa terra se preparava para, num discurso à Pátria, pedir desculpas públicas a todos os familiares das vítimas do 27 de Maio.
Depois de ouvir o discurso fui procurá-lo no sítio online da Presidência da República de Angola. E lá estavam escritas as palavras ditas:
“Completam-se amanhã 44 anos desde os trágicos acontecimentos que enlutaram o país aos 27 de Maio de 1977, num momento em que se passavam apenas dois anos da proclamação da Independência Nacional, pela qual tanto lutámos.
(...)
Caros compatriotas
Não é hora de nos apontarmos o dedo procurando os culpados; importa que cada um assuma as suas responsabilidades na parte que lhe cabe.
É assim que, imbuídos deste espírito, viemos junto das vítimas dos conflitos e dos angolanos no geral, pedir humildemente, em nome do Estado angolano, as nossas desculpas públicas e o perdão, pelo grande mal que foram as execuções sumárias naquela altura e naquelas circunstâncias. (...)”
Ao ouvir cada uma daquelas palavras e depois de ler o discurso na íntegra, às voltas com a mochila, com as pedras e com o coração, fui procurar um nome entre os nomes e os grupos de homens e mulheres que tombaram em 77.
Não encontrei a maçaneta que abre a porta do lugar onde repousa as ossadas do meu pai.
Mais sozinha do que nunca, peguei no telefone para falar com uma irmã de luto como eu. Seguiu-se o telefonema a uma outra amiga, advogada de profissão, para lhe pedir que me represente, para lhe pedir que me ajude e que por mim interceda para garantir a dignidade das ossadas do meu pai. Acossou-me a culpa de ter falado, de ter saído do carril que estava alinhado, de ter interpelado directamente o Presidente da República apelando ao pedido pelas desculpas. O meu lugar de vítima do 27 de Maio tornou-se um lugar de culpa por não ter concretizado o que me propus: dignificar o nome do meu pai. Se o pedido de desculpa tirou pedras da minha mochila? Sim, tirou muitas. Pedras e dor para substituir por outras quantas, pedras e culpa. E agora sinto-me como um pássaro a quem abriram a gaiola após 44 anos, mas que com a soma das décadas nunca aprendeu qual o segredo de voar.
E agora, pergunto-me, o que é que eu faço se nestes 44 anos na gaiola não aprendi a voar? E agora meu pai, como é que vou ao teu encontro? Ao encontro das tuas ossadas para recuperar o tanto de ti, agarrar-te a mim e voar contigo em direcção a Malanje para, naquela ponte sobre as águas do Rio Kwanza depositar os teus restos mortais e fazer as pazes, apaziguar as dores, largar as pedras e a mochila no nosso rio de lágrimas pintado a sangue, no rio das nossas penas, nas águas em que nunca, eu tua filha e tu meu pai, nos banhámos juntos.
E as lágrimas de novo, tanto tempo dado ao tempo e continuo tão longe de te puder finalmente abraçar, apertar-te contra o meu coração e Orar. Como farei eu, como viajar até ti e unir-me em nós, no nosso grande amor, intemporal, incondicional, o amor de uma filha por um pai.
Nesta altura lembrei-me do teu poema “África”, esse poema que no cárcere te acariciava a pele com o cheiro da nossa terra, para te responder com um outro poema escrito por mim: “Europa”, esta gaiola onde repousei tudo o que nunca consegui que os teus ombros amparassem. E é desta gaiola que, agora aberta, eu, tua filha, sinto a culpa, o peso da culpa de quem a vida não ensinou a saber voar. Meu pai, como irei eu agora voar até ti?
Se tenho palavras para responder ao pedido público de desculpas do Homem, do Filho, do Pai, do Marido, do Irmão, do Tio, do Chefe de Estado, do Comandante, do General João Lourenço? Tenho. As minhas e as dele nos dois poemas que se seguem. No fim, leia-se um “muito obrigada” e o sonho de que um dia as asas de um pequeno pássaro cheio de pedras na mochila se abram num abraço que… Meu Deus, se e eu não chegar?! Se eu não conseguir voar?
Muito obrigada! Aquele até sempre de todos os dias.
ÁFRICA
Qual louçania
Num pensar ensosso
Estendal de insípidas aflições
De martírios
De feitiços malogrados
Nas cadeias miseráveis de escravidão
África carpindo
Manancial de gritos confrangidos
Entre as pedras escorre o sangue
O suor
As lágrimas
O Nilo passa
O vento voa
Tradições esquecidas
De heróis indómitos no sigilo
África
Qual vida mundana
Perante forças enraizadas
Nutridas de ódios seculares
De corações indivisos
Ó esperança de novos dias
De África em ressurreição
Kolkota (Adelino António dos Santos – Betinho),
in Poemas dos Campos da Morte (1976)
Cadeia de São Nicolau, Novembro de 1973
EUROPA
Do velho Continente nada trago de novo.
Como ele, deixei-me envelhecer.
– Pai, está na hora de me deixares
voltar para casa.
Sozinha (Ulika Gisela da Paixão Franco dos Santos – Katika)
Lisboa (Portugal), Abril de 201