Quando há bullying, a culpa é de toda a comunidade educativa
A quantidade de adolescentes que se ri às gargalhadas quando lhes sugiro que falem com os professores sobre um problema na escola, diz tanto sobre a falta de esperança de que vão ser levados a sério
Querida mãe,
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Querida mãe,
O bullying volta, infelizmente, às notícias com mais uma história tornada pública sobre um rapaz que fugia de várias raparigas que o insultavam. Correu para o meio da rua e foi atropelado. Felizmente, está a recuperar. Não conhecemos os detalhes deste caso, mas desafio-a a falar com alguém que não conheça um caso parecido. Os pais dizem que falaram com a escola, a escola diz que não sabia, a opinião pública julga os miúdos, dizendo que “já têm idade para saber distinguir entre o certo e o errado”, e a vítima recebe umas palavras de encorajamento, mas tem de voltar à escola na semana seguinte.
Reconheço o quanto se tem falado sobre bullying e as acções de sensibilização que têm sido feitas, inclusivamente pela PSP. Aliás, no vídeo que deu conta deste mais recente caso, há crianças que gritam que o que está a acontecer é bullying... ou seja, podemos “congratular-nos” que muitos já o sabem identificar, o que é já um passo em frente.
Mas, mãe, e agora vou ser dura... Espere, deixe-me primeiro fazer um disclaimer em letras garrafais: Há professores, auxiliares e pais extraordinários, doces, empáticos e sensíveis e eu conheço tantos!... Mas — e esta é a verdade — a nossa comunidade educativa aceita com uma normalidade assustadora que os adultos digam frases como: “Cala-te, és burro”, “Não sejas bebé... Olhem todos para o Zézinho a chorar...”, “Olha-me este, agora tem a mania que sabe”, “Estou farto de vocês”, “Não sejas queixinhas. O que é que queres que eu faça?”, e muitas mais.
Desculpamo-nos com a ideia de que “as crianças têm de saber lidar com todo o tipo de pessoas”, “Na vida vão ouvir muito pior”, ou que “têm de ser autónomas”, na prática deixando-as sozinhas, a sobreviver a pressões de todo o tipo sem ninguém que as ajude; ou, sequer, lhes ensine a como resolver conflitos entre amigos ou com outros adultos.
Mãe, a quantidade de adolescentes que se ri às gargalhadas quando lhes sugiro que falem com os professores sobre um problema na escola, diz tanto sobre a falta de esperança de que vão ser levados a sério. E, no entanto, quando os adultos são capazes de falar na escola com os mais novos num outro tom, de uma outra maneira, basicamente com mais respeito, não imagina o milagre que se opera na maneira como as crianças passam a falar umas com as outras. Já o testemunhei muitas vezes.
Reforço, a culpa não é do professor A ou do B (que está a trabalhar horas a mais, mal pago, que foi tratado da mesma forma e que nunca ninguém formou ou ajudou a desenvolver outras estratégias pedagógicas), mas muitas vezes de toda a comunidade escolar. Se queremos acabar com o bullying nas escolas, na minha modesta opinião, temos de começar por aqui.
Querida Ana,
Não posso estar mais de acordo contigo. Aliás é o que no mundo laboral se chama de “cultura de empresa”, um conjunto de crenças, valores e normas que definem o “clima” interno, estabelecendo comportamentos e maneiras de comunicar do topo da hierarquia até à base, sem excepções.
Nas minhas mil visitas a escolas, ao longo dos anos, tendo a perceber no primeiro momento qual é a “cultura” daquela escola ou agrupamento, e digo-te, sem medo de errar, que a pessoa ou pessoas que ocupam os lugares de direcção fazem toda a diferença. Há escolas em bairros degradados sem um graffiti, em que passas nos corredores e percebes que o tom entre os alunos é cordial e afável, em que das auxiliares a quem te atende na biblioteca maneira de falar é correcta e até gentil. E não é uma questão de sorte, de lhes ter calhado uma equipa melhor do que a da escola do lado, mas do exemplo, e da capacidade de criar uma estrutura organizacional inspiradora.
As escolas têm passado por tantas mudanças e revoluções, possuem estruturas tão pesadas e burocráticas, e o seu quadro de pessoal está sempre em mudança, o que torna tudo mais difícil, mas apontar o dedo constantemente ao “cliente”, culpando-o pelo que corre mal, já cansa. Ninguém diz que é fácil lidar com grupos tão heterogéneos de alunos, nem suplantar deficiências e falhas sociais e familiares, mas quando a escola não é um lugar onde se aprende a tratar os outros com respeito, a debater ideias e a resolver conflitos, todos os conteúdos académicos valem de muito pouco.
A escola é, sim senhora, um lugar onde também se educa, e se colmatam carências que — se não forem superadas — vão ser para sempre um obstáculo na vida daquela criança. Porque, Ana, repara, quando ajudo um aluno a perceber que não pode dizer palavrões a cada duas palavras, estou não só a contribuir para que melhore o vocabulário, mas também, a dar-lhe ferramentas que lhe permitem ir a uma entrevista de emprego, e ficar colocado. Não estou para aqui a ensinar o Pai Nosso ao vigário porque milhares de professores o fazem todos os dias, mas a questão é que não pode ser uma lotaria, nem uma escolha individual. Idem aspas para as universidades — têm de ambicionar a mais do que desenvolver competências técnicas, pois o seu papel é o de, igualmente, ajudar os seus alunos a tornarem-se melhores pessoas, e sem dúvida mais bem preparadas pedagogicamente, vão ou não “dar aulas”.
Acredito mesmo que só quando os adultos não usarem o bullying dentro de “casa”, haverá esperança de que os miúdos deixem também de recorrer a ele.
No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram.