Carlos Santos Pereira (1950-2021): “Se lhe diziam que era perigoso, era para aí que queria ir”

O repórter, especialista na Europa de Leste, um “lobo solitário” com “tanto de génio como de louco”, tinha 70 anos. Deixa “praticamente prontos” dois livros, um sobre jornalismo de guerra e outro sobre a queda do comunismo.

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Quem trabalhou com Carlos Santos Pereira – o antigo editor de Política Internacional e grande repórter do PÚBLICO, especialista em Europa do Leste, falecido este domingo aos 70 anos – recorda-o como uma figura única, um romântico do jornalismo de guerra e revoluções, um homem para quem a reportagem no terreno era uma grande paixão. A par dessa, só uma outra, referida por todos os amigos, sem excepção: as motos.

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Quem trabalhou com Carlos Santos Pereira – o antigo editor de Política Internacional e grande repórter do PÚBLICO, especialista em Europa do Leste, falecido este domingo aos 70 anos – recorda-o como uma figura única, um romântico do jornalismo de guerra e revoluções, um homem para quem a reportagem no terreno era uma grande paixão. A par dessa, só uma outra, referida por todos os amigos, sem excepção: as motos.

“Se lhe diziam ‘não vás para aí porque é muito perigoso’, era precisamente para aí que ele ia”, conta o amigo de longa data José Peixe, que fez com ele várias viagens de moto. Houve, contudo, uma a que lhe disse que não. Foi quando Santos Pereira o desafiou a ir à Tchetchénia. “Tenho-te acompanhado em muitas loucuras”, disse-lhe, “mas não vou nessa”.

Carismático e com um profundo conhecimento do antigo Bloco de Leste, era capaz de partir para uma reportagem, de um momento para o outro, levando apenas uma escova de dentes e uma muda de roupa. Formado em História, foi também autor de três livros, Guerras da Informação, Os Novos Muros da Europa e Da Jugoslávia à Jugoslávia. Nos últimos anos foi publicando pontualmente no PÚBLICO artigos e textos de opinião sobre a actualidade, da pandemia ao uso injustificável de expressões em inglês.

Nervoso, de energia aparentemente inesgotável, bebia cafés uns atrás dos outros, ao mesmo ritmo alucinante a que fumava cigarros – hábito que manteve até ao fim da vida, apesar de, nos últimos anos, estar profundamente debilitado por um cancro na próstata e por zona, que lhe provocava dores permanentes e, segundo confidenciava aos amigos, muitas vezes insuportáveis.

Os problemas de saúde obrigaram-no a deixar de andar de moto (nunca ninguém percebeu como é que, franzino como era, tinha força para motos tão grandes e pesadas) e isso custou-lhe muito, conta ainda José Peixe, descrevendo-o, sobretudo nos últimos tempos, como “um lobo solitário”, que tinha trocado Lisboa pela antiga casa dos pais, em Ourém, onde plantou perto de 200 carvalhos franceses – “tinha um orgulho enorme neles” – e onde tentava distrair-se da dor aprendendo a tocar gaita-de-foles.

Mas continuava a trabalhar, sempre durante a noite e até de madrugada – e foi precisamente sentado à secretária que foi encontrado depois de ter falhado a ida diária ao pequeno restaurante da vila onde jantava habitualmente com amigos, que estranharam a sua ausência e o silêncio do outro lado do telefone.

O repórter e escritor Paulo Moura, que trabalhou com Santos Pereira no início dos anos 90, no arranque do PÚBLICO – Santos Pereira fez parte da equipa de fundadores que saiu do Expresso acompanhando Vicente Jorge Silva – falou com ele ainda na semana passada para discutirem a possibilidade de editar dois livros que ele tinha praticamente prontos e que queria muito publicar.

José Peixe diz que essa conversa deu uma nova energia ao amigo. Um dos livros, revela Paulo Moura, era a sua tese de doutoramento sobre o jornalismo de guerra no mundo, o outro centra-se no período que antecedeu a queda da União Soviética e “desenvolve uma tese própria para explicar o fim do comunismo”. Segundo José Peixe, existia ainda um outro projecto, mas apenas em forma de notas, sobre a guerra colonial na Guiné, onde Santos Pereira esteve, integrado nos Comandos.

“Uma enorme ânsia de falar sobre tudo”

Todos os que leram o PÚBLICO nos primeiros anos recordam a enorme lista de correspondentes em variadíssimos pontos do mundo. “Essa rede imensa foi ele que a criou”, afirma João Carlos Silva, também antigo editor de Política Internacional do diário e subeditor de Santos Pereira nos meses iniciais de 1990.

Tinham começado a trabalhar juntos no Expresso e recorda-o como “uma figura única”, alguém que “era capaz de sair do Expresso em dia de fecho só para ir espreitar uma mota num stand” e chamava carinhosamente à que tinha estacionada à porta do jornal “a minha burra”. E que, ao mesmo tempo, tinha “uma enorme ânsia de falar sobre tudo”, o que o levava a aceitar trabalhos de várias editorias em simultâneo, dividindo-se entre política, sociedade, cultura ou economia e “prometendo tudo a todos para a mesma hora”.

“Falava várias línguas eslavas”, conta ainda Paulo Moura, que se lembra de chegar à redacção e de o ver agarrado ao telefone, “a gritar em polaco” com alguém do outro lado do mundo. “Era uma personagem única. Falava russo como quem fala a própria língua, e provavelmente com tantos palavrões como os que usava em português.” Tinha uma “sofreguidão” que o levava a querer escrever sobre tudo – e foi precisamente a forma como, em longas reportagens, cruzava política com cultura, sociedade e mentalidades que fascinou Paulo Moura, levando-o a querer ir para o jornalismo.

José Milhazes, que durante muitos anos foi o jornalista do PÚBLICO em Moscovo, fazia parte dessa rede de correspondentes espalhada pelo mundo de que fala João Carlos Silva. “Conheci o Santos Pereira em 1989 quando foi cobrir as eleições para o Congresso dos Deputados do Povo da URSS, as primeiras livres no país.” O repórter convidou-o para escrever no PÚBLICO e iniciaram uma amizade nunca abalada pelas várias discussões e divergências que tiveram ao longo dos anos. “Ele tinha tanto de genial como de louco, no bom sentido”, diz Milhazes.

Era, além disso, “um picuinhas”, com uma enorme preocupação em confirmar todas as informações. “Era muito curioso, sempre à procura de entrevistas e contactos, marcava dez entrevistas para um dia e depois não conseguia fazer metade”, continua o antigo correspondente em Moscovo, onde viveram juntos várias aventuras. “Trabalhava que nem um animal, não havia horas para descansar”. E tinha outra característica, nem sempre fácil de gerir na Rússia: “Não gostava de almôndegas nem de carne picada”.

Depois de sair do PÚBLICO, ainda na década de 90, trabalhou para a RTP, para o Diário de Notícias e a TSF, foi comentador de política internacional e deu aulas no Instituto Politécnico de Tomar. Ainda antes da notícia da morte, o município de Ourém tinha previsto para o dia 20 de Junho uma homenagem a Carlos Santos Pereira com a atribuição de uma medalha de mérito municipal. Mas a maior homenagem será, diz José Peixe, a publicação dos dois livros que deixou quase prontos. Os amigos prometem empenhar-se para que esse sonho se cumpra.

O funeral realiza-se quarta-feira, dia 26, em Lagoa do Furadouro, Ourém, às 16h30.