No Brasil, somos muito “Severinos”

Os versos de João Cabral de Melo Netto parecem falar da actualidade brasileira, caracterizada pelo enfraquecimento de políticas públicas em vários sectores, o aumento exponencial de desempregados e desalentados, a expansão da fome e da miséria e o vultuoso número diário de mortes, em razão de uma doença para a qual já existe vacina.

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Adriano Miranda

Em 1955, o poeta modernista brasileiro, João Cabral de Melo Netto, trazia na sua obra Morte e Vida Severina um retrato dramático e emocionante do sertão do Brasil, firmando-se como um expoente da literatura regionalista nacional. Um dia desses, acordei com alguns de seus versos sobre a saga de Severino, o personagem que, fugindo das mazelas do sertão nordestino, ruma ao litoral em busca de melhores oportunidades, martelando na cabeça. No Brasil de 2021, em que a pandemia e seus aliados não cessam de matar, Severino parece renascer, qual fénix, agora em todas as regiões do país, compartilhando, porém, da mesma velha sina: sobreviver às inúmeras adversidades impostas.

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Em 1955, o poeta modernista brasileiro, João Cabral de Melo Netto, trazia na sua obra Morte e Vida Severina um retrato dramático e emocionante do sertão do Brasil, firmando-se como um expoente da literatura regionalista nacional. Um dia desses, acordei com alguns de seus versos sobre a saga de Severino, o personagem que, fugindo das mazelas do sertão nordestino, ruma ao litoral em busca de melhores oportunidades, martelando na cabeça. No Brasil de 2021, em que a pandemia e seus aliados não cessam de matar, Severino parece renascer, qual fénix, agora em todas as regiões do país, compartilhando, porém, da mesma velha sina: sobreviver às inúmeras adversidades impostas.

A tragédia comum dos nascidos no sertão nordestino, como a fome, a seca, a pobreza e a morte, fez João Cabral de Melo Netto construir o personagem Severino, o qual, na verdade, não passa de um representante da massa deslocada de migrantes ("retirantes"), que faziam legião no interior do Nordeste brasileiro na luta pela vida. Num cenário de aridez física e metafísica, Severino lança-se no caminho não menos árduo de tentar uma nova vida possível, num local onde a natureza contribuísse e o Estado se fizesse mais presente: o litoral. No séc. XXI, ainda são muitos os retirantes olvidados, que peregrinam guiados apenas pela esperança de conquistar uma vida um pouco melhor, dia após dia.

Entretanto, o que me fez lembrar a obra do autor foi a vocação que seus versos possuem para traduzir a actualidade brasileira, caracterizada pelo enfraquecimento de políticas públicas em vários sectores, o aumento exponencial de desempregados e desalentados, a expansão da fome e da miséria e o vultuoso número diário de mortes, em razão de uma doença para a qual já existe vacina. Morte e Vida Severina passa a ser, assim, o relato da tragédia comum dos brasileiros. Se a morte atinge a todos, a fome chega aos lares de muitos e o desemprego devasta a vida de vários, acabamos por ser todos um pouco “Severinos”. Estamos em plena “severinização” do Brasil.

Os versos que saltam do século passado, como que endereçados para o presente, são estes: “E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida). Somos muitos Severinos iguais em tudo e na sina.”

Sim, somos “Severinos” iguais em (quase) tudo na vida, pois a pandemia ainda é mais cruel para alguns grupos sociais do que outros. Todavia, estamos todos morrendo de “morte igual”, a mesma morte das mazelas “severinas”. Estamos morrendo com o rejuvenescimento da pandemia, que mata a “velhice antes dos trinta”; estamos morrendo de emboscada antes dos 20, com extermínios e chacinas predestinadas, como a ocorrida na favela do Jacarezinho (Rio de Janeiro), no início do mês de Maio; estamos morrendo de fome um pouco por dia, com o retorno ostensivo de um problema que estava em vias de superação nos anos passados; estamos morrendo de fraqueza e de doença, de apatia e de cardiopatia, de pandemia e de necropolítica. A covid-19 é essa doença que, como narra Melo Netto, faz “Severinos” em qualquer idade e, sim, começa a atingir gente ainda não nascida. Brasileiros “severinos”, agora iguais em tudo, sofrendo a mesma sina.

Infelizmente, nem todos conseguem chegar ao litoral do emprego, da segurança alimentar e da vacina, pois o sertão das misérias parece transmutar-se para todo o território nacional, onde o Estado é ausente, onde a ingerência política é presente e onde se escolhe os merecedores a viver e a morrer. Nesta caminhada utópica rumo a um litoral de esperança de vida, não chegaram todos e não chegarão muitos de nós, brasileiros. No meio do caminho para o litoral existe, não uma, mas várias pedras, Drummond, muitas delas intransponíveis. Para um “Severino”, é difícil seguir a ordem do “vamos ficar vivos!”, quando tudo concorre para a morte. Gostaria que a resiliência nos socorresse agora, mas nesse tempo de tragédia comum brasileira só nos resta a resistência. Sim, há aqueles que nunca saíram do litoral das oportunidades, mas também eles, hoje, sofrem com a “severinização” e a falta de vacinas. A massa de retirantes está enorme, tomou a proporção de uma nação. Nela, somos muitos “Severinos”. Nela, somos todos retirantes. Dela, somos 435.823 retirados.