Quando começámos a sexualizar a amamentação?
Fico feliz por ver cada vez mais mães amamentarem com toda a naturalidade, onde quer que estejam, mas prefiro militar no grupo das que preferem fazê-lo com discrição.
Querida Mãe,
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Querida Mãe,
Hoje a minha birra é polémica. Há quem condene totalmente. Há quem aprove radicalmente e há quem diga que sim, mas escondido, s.f.f.. E não é o que parece. Não estou a falar de prostituição ou de drogas, mas sim de amamentar em público.
É um assunto que divide amigos, avós e filhos e, às vezes, marido e mulher, e aí é ainda mais difícil de gerir.
Lembro-me a primeira vez que dei de mamar na vida — no serviço de neonatologia. E lembro-me de ter lá o meu padrasto. Durante um segundo pensei “Será isto apropriado? Será que ele vai ficar aflito?”, mas o seu olhar de ternura e o entusiasmo com que fotografava, mostraram-me que era um gesto bem-vindo — o que me deu sempre imensa força.
Mas, os olhares não seriam todos assim, nem seria a última vez que pensava para dentro: “Posso? Não posso? Vou para dentro, tapo-me, atraso as horas, não saio para evitar....” Ao longo dos anos, e também pelo facto de estar com outras mães que também davam de mamar, começou a tornar-se óbvio (para mim) que andava a viver um problema que não devia existir.
É preciso ter em conta que quando se amamenta, dá-se de mamar muitas vezes! É uma altura em que estamos muito tempo sozinhas e a logística já torna difícil sair de casa. Por isso ter que interromper uma conversa boa, na sala, para ficar isolada num quarto a dar de mamar começou a deixar-me deprimida! Tapar o meu filho com um pano (que cada vez mais energicamente recusava), quando ainda por cima a maioria das pessoas felizmente se estava nas tintas (e o que não estavam, deviam estar) parecia-me sinceramente ridículo. Fui ficando mais confortável com o dar de mamar em público, o que não é sinónimo de me despir como se nada fosse, à frente de quem quer que fosse, independentemente do contexto!
Mãe, quando pensamos bem sobre isso é mesmo caso para dizer “Mas qual é o mal?”, principalmente quando temos múpis gigantes de mulheres em lingerie, quando vemos mulheres a mostrar muito mais decote do que aquele que se vê em qualquer mãe a dar de mamar. Por isso pergunto-me: quando começámos a sexualizar a amamentação? Quando deixámos de a ver como aquilo que é — alimentação e amor. Como caímos na versão do “temos de nos tapar para que os homens não percam a cabeça?”, como se fossem uns seres sem nada na cabeça?
Mãe, de que lado da barricada está?
Querida Ana,
De que lado da barricada estou? Depende da barricada. Não tenho dúvida nenhuma de que fico feliz por ver cada vez mais mães amamentarem com toda a naturalidade, onde quer que estejam, mas prefiro militar no grupo das que preferem fazê-lo com discrição — e discrição não significa um pano a tapar a pobre criança, nem escolher o canto mais escuro da sala. Mas, decididamente estou do outro lado da barricada, se o que se defende é uma exibição muito ostensiva, que acaba por impor aos outros uma realidade que eventualmente lhes pode provocar um grande desconforto. Desconforto que merece ser respeitado, mesmo por quem o considera um sinal exterior de um atraso cultural.
Até porque, reconheço, que tenho do dar de mamar uma visão mais romantizada, até mágica, do que a versão “isto é igual a sentarmo-nos à mesa a almoçar”. Para mim foi sempre um momento de intimidade, de proximidade, de paz e sossego numa vida sempre a correr e em que tantas vezes não tínhamos momentos a sós com o nosso bebé. Reconheço que é uma leitura diferente de uma versão mais ao estilo da Organização Mundial da Saúde, do leite como alimento com mil e quinhentas vantagens saudáveis para a criança, para prolongar no tempo.
Ui, já começamos a entrar no nosso campo de batalha, por isso vou mudar de assunto, e responder às tuas perguntas “históricas”. Não sei se já reparaste mas as imagens das Nossas Senhoras do Leite, da Idade Média, têm o peito bem visível, sem inibições, nem vergonhas, mas nas que encontras desde aí até aos nossos dias, adeus peito à vista (aliás como os cabelos) — é um empobrecimento artístico terrível, sob os ditames do Concílio de Trento, em meados do século XVI, que desencorajava a nudez, e promovia uma Virgem Maria muito mais distante das mulheres de carne e osso. Além do mais, à medida que as mulheres das classes altas passavam os filhos às amas, secando o seu próprio leite (com dor e lágrimas) para poderem engravidar de novo o mais rapidamente possível, as Nossas Senhoras passaram a ser figuradas à imagem das senhoras que as encomendavam. Foram séculos deste pudor forçado, e é uma felicidade, para as mães e para os bebés, que as mulheres se estejam a libertar dele — mas o nosso ADN cultural também demora um bocadinho a evoluir. Neste caso, a voltar à origem.
Beijinhos
No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram.