O insaciável Jeff Bezos
Pondo de parte os avanços tecnológicos e as economias de escala que permitem executar todas estas tarefas de forma integrada, uma grande parte da mão-de-obra contratada pela Amazon é precária.
Jeff Bezos despediu-se o mês passado dos investidores da Amazon com uma carta emocionada, onde o homem mais rico do mundo reflecte sobre o crescimento estratosférico da empresa que fundou na sua singela garagem em 1997, com o mísero quarto de milhão de dólares que os seus paizinhos encontraram entre as almofadas do sofá.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Jeff Bezos despediu-se o mês passado dos investidores da Amazon com uma carta emocionada, onde o homem mais rico do mundo reflecte sobre o crescimento estratosférico da empresa que fundou na sua singela garagem em 1997, com o mísero quarto de milhão de dólares que os seus paizinhos encontraram entre as almofadas do sofá.
A epístola relata a evolução impressionante dos indicadores da empresa, atingindo 1,3 milhões de trabalhadores e, mais importante que tudo o resto, a criação de 1,6 milhões de milhões de dólares de riqueza para os seus accionistas. Foca-se na filosofia central da companhia, o tecno-capitalismo, em que para se ter sucesso é necessário criar mais do que se consome, ser teimoso e crescer insaciavelmente (“we are stubborn and relentless”).
Ficamos a saber que o Jeff Bezos é fã da redistribuição da riqueza, desde que esta seja redistribuída para os seus bolsos e dos accionistas. Em 2019, a Amazon fez 44 mil milhões de dólares em vendas na Europa e pagou zerinho de impostos. Não admira que ele e a sua ex-mulher tenham, inicialmente, ponderado chamar à empresa um nome mais revelador do seu carácter, registando o site, optando depois pelo nome do maior rio do mundo a nível de caudal, esperando que o volume financeiro da sua livraria digital viesse emular. Não deixa de ter piada que desde então a Amazon tenha tido um desempenho diametralmente oposto ao da floresta homónima: enquanto uma expande exponencialmente, a outra vai desaparecendo a ritmos cada vez mais assustadores.
Jeff passou depois a queixar-se dos ataques da opinião pública à forma como a empresa cuida do bem-estar dos empregados (“you might think we have no care for employees”). Foca-se nas estatísticas internas que demonstram o contentamento dos seus trabalhadores, diz que os objectivos delineados para cada colaborador são razoáveis e regozija-se até com o facto de eles poderem ter “pausas no trabalho para esticar as pernas, beber água, ir à casa de banho ou falar com o seu chefe”. O que torna a Amazon um caso de tanto sucesso é a habilidade de nos fazer chegar a casa produtos aos preços mais baixos e com uma rapidez vertiginosa.
Quem nunca viu um livro à venda numa livraria para depois o comprar na plataforma e poupar dois euros, que atire o primeiro calhamaço! Pondo de parte os avanços tecnológicos e as economias de escala que permitem executar todas estas tarefas de forma integrada, uma grande parte da mão-de-obra contratada pela empresa é precária. Não são raras as notícias de trabalhadores se sentirem tratados como robots, urinarem em garrafas de plástico para não falharem os objectivos estipulados pela pulseira vigilante que lhes foi instalada.
Por falar no The Matrix, como é que Jeff sugere melhorar o bem-estar dos trabalhadores que, infelizmente, se comportam como seres humanos e não como autómatos? A Amazon está a “investigar soluções para reduzir o risco de lesões musculoesqueléticas no trabalho”, como “algoritmos sofisticados que permitam alternar entre trabalhos que recrutem grupos distintos de músculos e tendões”. Ou seja, dividir os dias da semana entre empacotar com o braço esquerdo e seleccionar itens em tempo recorde com o braço direito.
A minha costela de engenheiro biomédico alegra-se com as possibilidades de emprego em biomecânica do esmifranço. A empresa até já patenteou uma jaula para os empregados irem montados num braço robótico com rodas para permitir que entrem em zonas onde o perigo de derrocada de televisões é elevado. Medo! Vê-se que a empresa já se apercebeu que a única forma de projectar estes níveis de crescimento para o futuro é tirar os limites humanos da equação.
O consumidor até pode tentar reagir contra o açambarcamento amazónico, optando por utilizar o comércio local com custos acrescidos ou reduzindo para zero o seu número anual de compras na plataforma. No entanto, a empresa já fez o pivot para outras indústrias (60% do lucro da Amazon provém do seu subsidiário AWS, fornecedor de servidores e da cloud, e já estivemos mais longe de sermos eutanasiados por Alexas) e fornece a infra-estrutura digital sobre a qual nossos governos e sociedades assentam e da qual só os poucos índios amazónicos não dependem.
Tal como as árvores estranguladoras que tomam conta e destroem os templos do Camboja, a Amazon tem as suas raízes nos hábitos, serviços e estruturas dominantes na sociedade ocidental. É uma questão de tempo até que se entranhem de tal forma que sequem tudo e só deixem ruínas e escombros no seu rasto. Mas o insaciável Jeff já se virou para a exploração espacial como alternativa a um planeta com recursos limitados.