Carta aberta: Reduzir a poluição luminosa em Portugal
De par com outros desenvolvimentos tecnológicos que nos conduziram à emergência climática, estamos no século XXI ainda cegos pelo deslumbramento que a luz provocou no século XX. Remediá-lo é urgente.
Senhor primeiro-ministro da República Portuguesa, Dr. António Costa
Excelência,
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Senhor primeiro-ministro da República Portuguesa, Dr. António Costa
Excelência,
Os signatários vêm pedir ao Governo a aplicação urgente da Resolução da Assembleia da República n.º 193/2019 que “Recomenda ao Governo que regule e adote medidas para combater o impacto da poluição luminosa no meio ambiente” e que, até à data, não teve consequência prática conhecida.
A luz artificial é parte indissociável da organização ou reorganização das sociedades e, sem dúvida, um dos grandes feitos da humanidade. Mas foi também o meio que, no percurso de ruptura entre o ser humano e a natureza, permitiu a transformação do ciclo dia-noite numa imposição 24/7 de eterno dia, desconsiderando os impactos da emissão de luz para a atmosfera. A ausência de regulação teve como resultado um crescimento injustificado da luz no ambiente e concomitante aumento da poluição luminosa. Como consequência, nunca a luz artificial à noite no exterior foi tão abundante quanto hoje no Planeta e, de forma muito evidente, em Portugal, com aumento extraordinário nas últimas décadas e tendência crescente. Vivemos uma situação que nenhuma geração antes experimentou: a ausência de noite, da escuridão natural, de um céu nocturno estrelado, eternas fontes de inspiração em todos os domínios, das artes e letras ao conhecimento científico.
Este excesso de luz resulta quer da quantidade, quer da forma como se ilumina, e não de um aumento de população ou da real necessidade de iluminar – ou de iluminar tanto. Iluminando em demasia e sempre, a luz representa, também, sumidouro energético importante e um inaceitável desperdício.
Portugal pior país da Europa quanto à poluição luminosa
Há consenso científico quanto aos prejuízos da luz artificial à noite. Na sequência da investigação em particular das últimas duas décadas, a luz é hoje reconhecida como agente poluente, inclusive pelas Nações Unidas e pela União Europeia. Além das características cúpulas de luz geradas sobre as cidades ou localidades iluminadas, que modificam a paisagem natural e provocam uma degradação significativa da qualidade do céu nocturno quer a nível local, quer a grandes distâncias, a luz artificial à noite é igualmente responsável por danos ambientais na biodiversidade, de zooplâncton a mamíferos, passando por anfíbios, avifauna, répteis ou insectos (com impactos desde logo na polinização). De facto, mesmo emissões de luz que, a nossos olhos, ajuizemos como insignificantes, podem ter impactos reais em espécies nocturnas mais sensíveis. A visão antropocêntrica desatende ainda mais, porém, àquilo que não é tangível ou que contraria uma satisfação imediata. Temos assim subvalorizado a importância dos ecossistemas à noite, período tão ou mais importante do que o dia para a conservação da Natureza na qual, como para a humanidade, as 24h do dia representaram desde sempre ciclos de claro-escuro imprescindíveis ao seu equilíbrio.
Estudos recentes mostram que Portugal é o pior país da Europa no que respeita a poluição luminosa. É o país europeu que mais aumentou a sua área iluminada (Kyba et al., 2017) entre 2012 e 2016. Mas é também o país que mais poluição luminosa gera por habitante e por PIB (Falchi et al., 2019): das 1359 regiões estatísticas NUTSIII da Europa, Portugal Continental contém 23; dessas 23 NUTSIII, seis delas estão entre as 25 com maior emissão de luz per capita, e sete delas entre as posições 26 e 50. Para melhor termo de comparação, Portugal Continental emite para a atmosfera um fluxo per capita quatro vezes superior ao da Alemanha.
Restaurar a noite estabelecendo limites
A remediação é, pois, urgente. Passa, desde logo, por estabelecer limites à emissão de luz no que respeita à quantidade, à qualidade, aos locais e aos períodos de emissão. Inclui-se aqui o critério de criação de quotas de emissão de luz sustentadas pelo conhecimento científico mais actualizado que tem em consideração os diversos impactos no ambiente e no céu nocturno da luz artificial à noite. Estes limites e preocupações têm também estado ausentes dos documentos técnicos de iluminação pública (ou outra) seguidos em Portugal.
O restauro da noite passa ainda pelo travão imediato à iluminação LED branca (temperatura de cor igual ou superior a 2700 K), não só a que tem mais impactos na biodiversidade e no céu nocturno local, mas que tem também transformado a paisagem numa incaracterística paisagem branca e artificial, iluminação essa que tem sido imposta à sociedade sem a explanação das suas desvantagens. Existem alternativas com menores impactos mas igualmente eficientes, como os LED de tonalidade laranja ou amarela (e.g. LED pc-âmbar, LED branco com filtro amarelo ou alternativas equivalentes, onde os comprimentos de onda abaixo dos 500 nanómetros, correspondentes ao azul, estão ausentes ou são residuais) que, em combinação com fluxos muito inferiores aos actualmente usados, contribuiriam não só para reduzir os danos da luz à noite de uma forma generalizada, mas também para um desejável menor consumo energético. Passa igualmente pela limitação dos períodos de funcionamento de muitas instalações públicas ou privadas com fins cénicos ou comerciais e, sempre que possível, de ruas ou estradas em que não se justifique iluminação a partir de uma certa hora. Nos locais em que o desligamento não seja possível, uma redução adicional do fluxo nos períodos de menor actividade exterior deve ser prioritária. Passa, por fim, por não iluminar sempre que possível e só iluminar quando justificado, critério este que permitirá não só poupar como forçar uma desejável ponderação antes de decidir-se iluminar.
A inclusão, com as devidas adequações, de ferramentas legais similares às que existem para o ruído, permitiria também defender residentes de luz intrusiva ou incomodativa dirigida para as suas janelas ou propriedades, proveniente de iluminação pública, privada, painéis LED ou outras fontes.
Constituiriam medidas complementares de remediação imediata quer a revisão em baixa das classes das vias (as classes traduzem o volume de tráfego rodoviário ou pedonal esperado nessas vias), quer a redução global dos fluxos luminosos utilizados na iluminação pública. As normas europeias de iluminação pública, seguidas cá, não são sustentadas em conhecimento científico e recomendam valores excessivos para cada classe de via. A prática corrente em Portugal, porém, é a de iluminar com fluxos muito superiores aos sugeridos por essas normas. O resultado está à vista.
Do deslumbramento ao discernimento
De par com outros desenvolvimentos tecnológicos que nos conduziram à emergência climática, estamos no século XXI ainda cegos pelo deslumbramento que a luz provocou no século XX, iluminando-se de forma indiscriminada como se fosse inócua, iluminando-se porque se pode e não porque se deva. Iluminação não pode significar apenas “desenvolvimento” a partir do momento em que se conhecem todos os impactos a ela associados. Desenvolvimento significa iluminar com respeito pela Natureza, i.e., menos, incluindo não iluminar sempre que possível, e justificando cada iluminação. Restaurar a noite devolve a todas as gerações uma parte daquilo que entretanto se perdeu, da qualidade do ambiente à contemplação do firmamento.
A aplicação pronta da Resolução da Assembleia da República n.º 193/2019, bem como o progressivo decréscimo até 2030 para os níveis de iluminação utilizados na Alemanha, resolveria, na perspectiva dos signatários, grande parte da problemática e não traria senão vantagens à sociedade.
Subscrevem
Alexandre Alves Costa, Prof. Catedrático Emérito, Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto
André Moitinho de Almeida, Professor Fac. Ciências Univ. Lisboa, presidente Sociedade Portuguesa de Astronomia (SPA)
António Guerreiro, Jornalista e crítico literário
António Martinho Baptista, Arqueólogo, ex-director do CNART
Elizabeth Atchoi, Doutoranda em ecologia e poluição luminosa, UAç/FCT
Fabio Falchi, ISTIL, Univ. Santiago de Compostela, Físico e investigador em poluição luminosa
Francisco Guerreiro, Eurodeputado independente pelo grupo dos Verdes/ALE
Helena Freitas, Ecóloga, Prof. Catedrática, DCV, U. Coimbra
Henrique Miguel Pereira, Professor de Conservação da Biodiversidade, CIBIO, Univ. Porto
João Ferrão, Geógrafo, Investigador Coordenador Aposentado, ICS-ULisboa
João Miguel Ferreira, Prof. Auxiliar, UAç, Coord. Projeto Nox- Poluição luminosa nos Açores
João Pedro Rodrigues, Cineasta
José Carlos Costa Marques, Tradutor e editor, presidente da Associação Campo Aberto
Luísa Schmidt, Socióloga, Investigadora Principal, ICS-ULisboa
Manuel Sobrinho Simões, Prof. Emérito, Faculdade de Medicina do Porto
Maria Amélia Martins-Loução, Prof. Catedrática, FCULisboa, presidente da Sociedade Portuguesa de Ecologia (SPECO)
Maria Vicente, Plataforma de Ciência Aberta, Município de Fig. de Castelo Rodrigo – Univ. Leiden, Países Baixos
Martin Pawley, Agrupación Astronómica Coruñesa Ío (Galiza), crítico de cinema
Pedro Russo, Professor de Astronomia e Sociedade, Univ. de Leiden, Países Baixos
Raul Cerveira Lima, Prof. Adjunto ESS
PPorto, investigador em poluição luminosa no IA
Rosa Maria Fina, CLEPUL, Univ. de Lisboa, membro do projecto LX NIGHTS (CICS.Nova)
Salvador Bará, Físico, Prof. Titular, Área Óptica, Univ. Santiago de Compostela (Galiza), investigador em poluição luminosa
Sílvia Castro, fundadora da Associação de Comunicação de Ciência SciComPt
Teresa Andresen, Arq. paisagista
Vítor Serrão, Historiador de Arte, Prof. Universitário da Universidade de Lisboa